quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Cinderela


Fitou o espelho e admirou por um instante seu porte de porcelana. A linha da cabeça, sempre.

O conhecido movimento para alcançar a fita da sapatilha, e de súbito uma trajetória ligeiramente inusual da ponta de gesso libera um estalido que rasga a sala. A mão que passava já à fita termina de soltá-la mecanicamente.

A bailarina observa o pé liberto e olha estupefata os cacos que a refletem. Como fizera aquilo?!

Abandonando a sapatilha fatídica, levanta-se e desce correndo as escadas, embrenha-se pela rua. Os cabelos parecem saber, e soltam-se dos grampos sempre inescapáveis.

Surpreendentemente ofegante, bailarina que é, desaba sobre um banco. A planta do pé descalço acaricia a grama que o pinica.

Ao rapaz que passa pede um cigarro. Gostaria de levar em troca uma sapatilha de ponta? Ele sorri, segura-a pela fita e guarda ali o meio maço de cigarros amassado, enquanto se afasta.

Só, ela olha a praça e sente com atenção o vento gelado que lhe varre as bochechas. É bom.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Minha Mãe que Disse


Nunca pensei neste espaço como um blog de maternidade. É um caderno de escritos compartilhados, porque escrever é se autoconstruir, e compartilhar deixa a gente menos esquizofrênica, eu acho.

Mas é bem verdade que esse tema anda muito aqui, e eis que o portal Minha Mãe que Disse viu meus escritos e me convidou para escrever por lá. Instigada pelas preocupações deuma amiga recém-mãe, escrevi alguma coisa sobre amamentação. Quem quiser dar uma olhada, vai lá: http://minhamaequedisse.com/2013/10/o-corpo-e-a-alma/.



O corpo e a alma

Sempre achei que amamentar seria esquisito para mim. Claro que aí entram as minhas loucuras mais particulares, mas acho que esse receio ou dificuldade em relação a se sentir confortável na amamentação não é só meu. Para falar disso, poderíamos começar uma reflexão sobre o quanto a amamentação está ausente, como prática social, do nosso imaginário, dos nossos referenciais. Onde estão as mulheres amamentando? Eu não me lembro de vê-las com muita frequência, nem na minha família, nem na rua, nem na novela... Mas de vez em quando penso nelas figurando em críticas ou piadas. Apesar do incentivo oficial ao aleitamento materno exclusivo e prolongado, na prática nós temos de enfrentar diversos constrangimentos e tabus para implementá-lo.

Essa reflexão me parece inteiramente pertinente, e sugere uma linha de militância pró-aleitamento com a qual simpatizo. Mas, levada ao limite, seria como dizer que, se não fossem os preconceitos e tabus em torno da amamentação – ou seja, certas limitações e constrangimentos externos –, os receios ou desconfortos a seu respeito não existiriam. E eu acho que não é bem assim. Tem alguma coisa aí que vem de buracos que ficam mais embaixo...

Bom, eu e minhas pequenas loucuras. Uma coisa que me preocupava era como eu ia processar a relação entre meu bebê e uma parte tão erotizada do meu corpo. Essa maluquice de a gente estabelecer uma cisão absoluta entre filhos e sexo. Além disso, achava que não ia me sentir bem amamentando em público. Quando uma amiga, recém-mãe, me perguntou por quê, respondi com a maior simplicidade do mundo: pelo mesmo motivo que eu não faço topless... (Claro que não vai aqui nenhuma crítica a essa prática, já é bom falar, eu apenas quis dizer que a nudez pública do peito não era algo confortável para mim...)

Mas eu fiquei grávida, minha filha nasceu, e eu descobri que esses sentimentos sobre o corpo simplesmente mudam. Bem, mudaram para mim. A libido vira energia e ternura para cuidar do bebê. O peito cheio – vazando! – transforma qualquer erotização na necessidade de fazer o leite fluir, a vida fluir, marcada pelo ritmo novo do dorme e acorda do bebê. Descobri então que a resposta um dia dada à minha amiga era um tanto absurda, porque o peito que faz topless não é o mesmo que amamenta.

Ainda assim, a vontade de preservar a privacidade do corpo pode permanecer. E para isso existem recursos convenientes, como sutiãs, blusas e capas de amamentação, fraldinhas sobre o peito. No começo eles me pareceram ótimos e foram úteis, mas aos poucos fui achando que respondiam mais a um suposto pudor alheio que ao meu, e acabavam me atrapalhando, então fui deixando de lado.

Há quem sugira, como resposta a essa preocupação com a privacidade do corpo, o recolhimento da mulher que amamenta. Pois amamentar é um momento íntimo e especial, a ser vivido no aconchego do ninho e longe dos olhares alheios. Ok, se assim a mulher desejar. Se não for um recolhimento penoso, uma solidão indesejada. Se for um recurso, e não um inconveniente. Para mim não serviu. Eu vou ao bar com meus amigos, bebê mamando.

Mas o que fui percebendo, e para mim foi uma grande descoberta, é que ficar à vontade com a condição de mulher que amamenta é um processo que se dá junto ao de construir nossa nova condição de mulher que é mãe. Ao contrário do que podem dar a entender as frases feitas e as propagandas de fralda ou de margarina, tornar-se mãe inclui um processo de reestruturação emocional e redefinição de nossa identidade nem sempre confortável. E nesse pacote está a relação com o corpo e a amamentação.

Quando usamos nosso primeiro sutiã ou nosso primeiro absorvente, eles podem incomodar. E parece que todo mundo está olhando. Com o tempo, aprendemos a escolher o sutiã mais adequado, elegemos nossa marca de absorvente, e vemos que ninguém está nem aí para a nossa puberdade. O absorvente pode até incomodar, mas no final das contas o difícil mesmo é sair da infância e construir essa nova pessoa que não é mais criança e ainda não sabe o que é.

O constrangimento ou o desconforto em amamentar, em público ou não, tem algo do desajeitamento de quem está aprendendo a ser alguma coisa mais do que já era, a lidar com um corpo novo e uma nova autoimagem. A se colocar no mundo mais uma vez, em um outro lugar. E se para isso você precisa de um quarto à meia luz, acenda o abajur. Se precisa cobrir o peito, acomode seu bebê sob um paninho acolhedor. Se precisa do seio livre e desimpedido, mande o pudor alheio às favas. Porque você está colocando duas pessoas novas no mundo, e merece toda a ajuda possível.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Pastichando



Domingo de pão

Era sempre igual, tanto o pão como o ritual.

Primeiro ela tirava a aliança e colocava em algum canto da cozinha. Não vá a massa entranhar os pequenos brilhantes da única joia. (Às vezes, depois de tudo, um ligeiro pânico de perdi a aliança. Estava sempre lá; onde mais estaria?)

Nunca podia ser feito com verdadeiro sossego, pois logo íamos espiar o processo, perguntando. Minha mãe bem que gostaria desse sossego. Ela gosta de se mover só e concentrada, livre, na cozinha. Mas nós queríamos meter as mãozinhas: era mais fácil nos dar o que fazer, e acabávamos invariavelmente untando a forma. A tarefa das crianças.

A receita não lembro. Se iam ovos, leite? Lembro da farinha espalhada pelo mármore. Acho que herdei dela essa expectativa de que toda casa tenha uma grande superfície livre, uma bancada, uma mesa enorme. Pouco importa o tamanho da família.

O pão era sempre moldado como um falso rocambole, enrolando-se a massa nela mesma. Deixa crescer enquanto a bolinha sobe. Era absolutamente fascinante: a pequena bolinha de massa, que podíamos ajudar a enrolar e colocar no copo com água, de repente subia, e então era hora do forno. Não havia explicações sobre a densidade do ar e da água, era pura mágica. A mãe dela usara a bolinha no copo por toda a vida, e ela também fazia assim. Funcionava.

Ainda demora? Já sabemos, pão sempre demora. Mas a entrada no forno acionava inexoravelmente a ansiedade do pão quase pronto. E ninguém precisava nos avisar que ficou pronto, pois o cheiro entrava por cada cômodo e transbordava para o quintal, mais eficiente que sirene de refeitório. Cheiro de pão quente.

Enfim a manteiga derretendo sobre a fatia fumegante, amornada apenas o mínimo necessário para nossos dedos. Dizem que pão quente faz mal. Para nós, era puro deleite.