Da primeira vez que
fiquei grávida, foi tudo direitinho, tudo dentro dos planos.
Eu tinha um
relacionamento de muitos anos, um companheiro de amor e de vida. Nós sempre
acalentáramos o plano dos filhos, mas era para depois. Um ano antes de
engravidar, no meu trigésimo aniversário (sim, sim, minha vida é cheia de
clichês...), passei por um momento estranho e arrebatador, em que a perspectiva
de uma gravidez subitamente deixou de ser um receio e ganhou naturalidade. A
ideia foi acolhida, o desejo amadureceu.
Houve preparativos
práticos, também. Fui ao médico, fiz exames, tomei ácido fólico por três meses.
Encaixei o cronograma do mestrado com a gravidez e a licença-maternidade. O
marido pensou num modo de tirar férias após o nascimento do bebê.
Engravidei na primeira
tentativa. Ficamos espantados, orgulhosos, eufóricos. Saímos para comemorar, e
na mesma noite começamos a espalhar a notícia.
Num piscar de olhos,
somos especialistas em beta HCG, ultrassonografias, placentas e sacos
gestacionais. Sei tudo sobre os sintomas do primeiro trimestre, e felizmente
quase não os sinto.
Por volta da 10ª semana
de gestação, o exame de ultrassom vem decretar a ausência. A ausência do que
era o mais presente em nós. Não há nada lá. O embrião não se desenvolveu.
Gravidez anembrionária, aprendo. Ovo cego. Detesto esse termo.
O fluxo de instantes da
vida não prevê espaço para o momento inesperado. Nunca estamos prontos. O
incêndio nos surpreende de pijama, comendo sopa de pacotinho. Era no meio do
dia. Almoçamos. Meu marido foi trabalhar, eu fui para casa. Não trabalhei. Fiquei
pesquisando sobre aborto espontâneo na internet.
Na mesma tarde, uma
amiga vem me ver, e eu lhe digo: “Hoje me tornei adulta. Perdi um filho.”
Me lembro claramente
desse sentimento. Mas a situação técnica não era essa. Ovo cego, diz o Google. O
embrião nunca se formou. Penso em parede cega – aquelas áridas laterais de
prédio sem janelas, viradas para o nada. O nada. Não havia bebê. Sensação de
ser traída pelo próprio corpo. Como minha barriga me deixava acariciar o bebê
que não havia, como eu podia não saber?
Dizer “Quando perdi o
bebê” me foi impossível por muito tempo, parecia que não era honesto ou preciso. Assumi a frase “Quando tive o aborto”. Mas hoje começo a me
permitir dizer que perdi o bebê. Aceitar que perdi o bebê.
Eu perdi o bebê, aquele
que eu acalentava, que estava dentro de mim, embora não crescesse no meu útero.
Os dias que se seguem
são de um atordoamento estranho. Fico ressentida com o marido que não tem
vontade de falar sobre o assunto. Eu quero falar. E chorar.
Tive um aborto
espontâneo dias depois. Começou no banheiro de um auditório, estávamos num show
de música. Saio do banheiro chorando. Seria o primeiro de uma série de choros
contidos em lugares públicos. Durou alguns dias. O sangramento. O choro durou
mais.
Não precisei de
curetagem, clínica, hospital, nada. Um aborto espontâneo e completo. Útero limpo.
Coração em frangalhos.
O filho que eu não tive
veio me lembrar que a vida não se planeja. Podemos nos preparar, podemos
acalentar o vindouro e deixar tudo arranjado para acolher sua chegada.
Aprendemos no processo. Mas o caminho à frente nunca foi percorrido. Sempre.
O filho que eu não tive ajudava
a preparar a mãe que eu seria.
Termino de ler chorando. Bjs
ResponderExcluirEu também... Obrigada sempre, pelo carinho e pela empatia. Beijos
ResponderExcluirOi querida, que lindo texto, traz companhia e beleza para outras dores...eu também vivi esse vazio, doía no corpo, na alma, na pele, era algo gigante e me assustava muito como a vida podia seguir tão rápido para todo mundo. Além disso, eu já tinha uma filha e as pessoas tentavam me consolar com esse fato, mas o que acontecia em mim e que eu já conhecia a potência de um filho nos braços e isso me enchia ainda mais de saudade! Te amo, um abraço forte!
ResponderExcluirNenhuma alegria toma o lugar da nossa dor, elas precisam ser vividas cada uma... Também te amo...Beijo!
ExcluirMe emocionei.
ResponderExcluirO melhor é se permitir sentir essa dor, melhor, do que sofrer em prestação.
Sofra, chore e sinta... e tente de novo.
Qualquer coisa que te console, eu te desejo.
Abraços,
Kyona.
www.kyonacaron.com.br
Obrigada, Kyona.
ExcluirSeja muito bem-vinda aqui.
Aconteceu comigo. Estava na sexta semana quando descobri. Você descreveu exatamente como me senti: traída. Já faz 3 meses e ainda dói. O pior é que fiz a curetagem e o exame de cariótipo desfez a ideia de gravidez anembrionada. O exame constatou que não havia síndrome conhecida, 46 cromossomos, XX.
ResponderExcluirEsse "XX" fez com que doesse mais. Eu seria mãe de uma menina.
Fabiana, sinto muito, por você e por sua menina. Dói mesmo. Se me permite te dizer alguma coisa, peço licença e te digo que precisa doer, é um luto. Nossa sociedade não tem muito espaço para o luto, todos nos dizem que acontece, já passou, vai passar... Vai passar. Mas é justo e necessário que a gente possa lamentar a nossa perda. Eu levei mais ou menos um ano para me sentir bem de novo. Espero que você possa ter todo o tempo e ajuda de que precisar, e saia fortalecida dessa experiência. Um abraço.
ExcluirObrigada Carol, obrigada por me entender. As pessoas não gostam de nos ver chorando, tristes. Elas precisam nos consolar dizendo que logo vem outro. Eu não choro de medo de não vir outro, choro por não ter podido ter esse.
ExcluirObrigada, muito obrigada.