quarta-feira, 13 de março de 2024

Brechas

 

Nunca tenho tempo de ler um livro, exceto precisamente quando não tenho um comigo.

O shopping elegante onde estou tem loja Chanel (Channel?), porém a livraria não tem o livro do mês do meu clube de leitura. O do mês passado eu apenas consegui tirar do plástico, e agora receio não ter tempo para ler novamente até o mês que vem.

Decidi parar para uma tigela de sopa e uma taça de vinho antes de ir para casa, após doze horas ininterruptas de trabalho. Uma ideia possivelmente equivocada de autoindulgência.

Talvez eu coma um croissant.

Estou ficando velha e não tenho a menor ideia de coisa alguma. A sabedoria da velhice, é com quanta velhice que ela chega?

Hoje ouvi uma coisa perturbadora na rede social. Uma amiga refletindo que, aos quarenta anos, após uma vida de dietas, ela decidiu que nunca mais comerá nada de que ela não goste. Isso não foi perturbador, eu decidi faz muitos anos que desisto da briga das dietas, dos procedimentos estéticos dolorosos, a gente não pode naturalizar assim o autossuplício. As mulheres tantas vezes nem notamos o autossuplício constitutivo da nossa própria existência.

A coisa perturbadora que ela disse foi: não é possível que a gente siga sempre assim, se apertando o tempo inteiro.

Se apertando o tempo inteiro.

Além da dieta, também faz tempo que decidi parar de me apertar na silhueta. Meus anos de lingerie de compressão foram poucos. O que é demais.

Mas em algum lugar eu me aperto. Senão, não estaria aqui falando nisso.

Até olhei rapidamente as prateleiras em busca de uma compra por impulso. Como pode uma livraria para gente tão rica ser tão pobre?... Descubro que a antropóloga francesa atacada pelo urso siberiano escreveu outro livro, um grande agora. Mas e se ele estragar o primeiro? Não é algo para se fazer por impulso.

Peço o croissant.

Para minha salvação, o caderno eu trago sempre comigo.


domingo, 18 de fevereiro de 2024

A lua brilha

 

Eu cresci com a ideia de mim mesma como uma pessoa impulsiva. Acreditei por muito tempo nessa narrativa que me entregaram, até que percebi que as pessoas não veem por quanto tempo as coisas acontecem dentro de mim. Meus processos são lentos.

Passou o Carnaval e ainda estou vinculada a uma espécie de balanço de 2023, tentando dar o fecho a uma dinâmica que insiste em lançar seus tentáculos sobre mim e frustrar minhas expectativas de mudança.

No último ano, enfrentei algumas descobertas difíceis, dessas que são pontos de inflexão. Eu poderia muito bem definir meu ano com base em algum desses marcos. Mas descubro que 2023 foi para mim acima de tudo o ano em que finalmente fui derrotada pelo aplicativo de mensagens do celular.

Não consegui dar conta.

A conversa fluida com meus círculos pessoais deu espaço a uma espécie de (interminável) secretariado da vida prática: marcar consultas, falar com a escola das crianças, receber as notificações do supermercado on-line, alinhar horários e tarefas domésticas. E acabou a energia para todo o resto.

Não usufruí das conversas com os amigos, não vi as piadas da família, não participei dos grupos de pais e mães das escolas, me contentei em distribuir coraçõezinhos e joinhas anuindo com as decisões e iniciativas de todo mundo, já que eu não conseguia tomar nenhuma.

As conversas um a um com as pessoas mais queridas pediram delas a paciência de aguardar tantas vezes por respostas que demoraram a chegar tempo suficiente para que a pergunta já não fizesse mais sentido.

Totalmente incapaz de dar conta, desisti.

Acho que pela primeira vez, parei para fazer um exercício de “balanço & perspectivas” do meu ano. E nele sobressai uma sensação generalizada de estar sempre devendo alguma coisa, de estar sempre perdendo alguma coisa. Uma ideia que vinha me rodeando há tempos ganhou forma: a imagem de um fluxo de vida permanentemente perturbado pelas demandas simultâneas, cortado pelas constantes notificações de todo tipo, sobrecarregado pelo beliche de tarefas cada vez mais alto. Entendi que minha principal missão este ano é encontrar limites. Estruturar bordas e praticar a contenção, fazer o que precisa ser feito com os dois pés juntos, mantendo as duas mãos no mesmo lugar onde esteja a minha cabeça.

Não que seja fácil. A ilusão muito concreta da vida 24/7, a ideologia massacrante do ir além agarrada a cada poro, a cada neurônio. É preciso uma desintoxicação do modo de trabalho da sobreposição ilimitada de tarefas, da abertura indefinida de novas abas, da chegada infinita de notificações.

Como faz?

O exercício me fez lembrar de um poema que me encantou na adolescência, que dizia: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. A lua brilha porque alta vive”. Talvez muito impregnada pela cultura do meu tempo, e certamente pelas minhas neuroses, vi aí uma (romantizada) injunção ao desempenho. Dê o seu melhor, vá além. Mas ultimamente tenho conseguido enxergar os outros versos da estrofe, que eu tinha apagado: “Para ser grande, sê inteiro, nada teu exagera ou exclui”.

Abandonar o convite a excelência e caminhar rumo ao convite da plenitude. Uma boa meta.


sábado, 13 de janeiro de 2024

Gavetas


Leio diários antigos e me encontro em palavras passadas.

Aparentemente, me carrego comigo.

Me inquieto: eu saí de onde estava?

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Óculos

 

Agora ela tira sistematicamente os óculos para escrever, sentindo que isso a coloca de forma definitiva em outra fase da vida. A miopia carregada desde a infância é antídoto para a presbiopia surgida na meia-idade, de modo que os óculos que por toda a vida corrigiram, agora distorcem.

No café do hospital, escreve enquanto aguarda a liberação dos resultados de seus exames. A telemedicina não fechou diagnóstico para o vermelhão que apareceu na barriga: pode ser da covid e pode ser qualquer outra coisa. A médica do PS também foi evasiva, não esclareceu nada, acha que pode ser tudo uma coincidência. Pediu exame de sangue, outro de gripe e mais a tomografia do pulmão.

A cabeça flutua da recordação da escarlatina das crianças para o filme que viram juntas uns dias atrás, no qual uma das irmãs morre por causa dessa doença. Enfrenta a difícil constatação de que sempre que está um pouco doente é assaltada em algum nível pelo desejo mórbido de receber um diagnóstico moderadamente grave, com necessidade de internação. Algo que estabeleça uma barreira de contenção de sua vida comum, que a coloque em um estado excepcional e possa privá-la de todas as suas obrigações. Protegê-la com a redoma da debilidade de todas as exigências do mundo. O mundo lá fora em suspenso e ela podendo cuidar de nada, ninguém autorizado a esperar nada de sua parte. A redoma da debilidade.

Sua agenda deste ciclo está muito bonita, toda preenchida com as cores devidamente codificadas. Muitas páginas escritas. Muitas tarefas cumpridas.

Ela tem feito muitas coisas. Tem descoberto muitas coisas sobre si. E continua não sabendo o que quer de verdade.

Agora ela ensaia escrever na terceira pessoa, embora saiba que não engana ninguém.


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Suficiência


O capitalismo nos convence de que nada é suficiente – porque para ele de fato nunca é. Um sistema de acumulação crescente baseado no avanço constante das forças produtivas precisa ser sempre mais, sempre melhor. E transfere para nós sua própria necessidade, infundindo-a em nossa psique como injunção moral: seja sempre mais, seja sempre melhor.

Não seja. Faça o necessário. Contemple. Sinta a vida. Prove sem compromisso. Desista. Seja amador. Eclético. Diletante. Chegue a lugar nenhum – você sempre já está em algum lugar.

Você é suficiente.


domingo, 11 de dezembro de 2022

Todos os dias


Muitas coisas aconteceram há muito tempo. Inclusive as que aconteceram há pouco tempo. Eu tenho amizades de trinta anos atrás, e as recentes quase todas já datam de mais de meia década. Continuo não sabendo pintar aquarela, porém já pinto aquarelas há quatro anos. Minha filha caçula, que era um bebê semana passada, vai terminar o jardim de infância ano que vem. A mais velha, que era um bebê semana retrasada, ocupa toda a extensão de uma cama do tamanho padrão para seres humanos adultos. Faz 38 anos que eu tive minha primeira aula de piano. Iniciei minha primeira faculdade há 25 anos e concluí meu mestrado há quase uma década. Mais ou menos na mesma época em que comecei a escrever – escrever como fim, não como instrumento de estudo e trabalho –, criei um blog e entrei no Facebook, esperando que isso me fizesse menos angustiada e solitária. Faz nove anos que escrevo um livro que já deveria estar pronto. Conheci o Caribe há 15 anos e quase não fui à praia enquanto estive lá. Em dez dias farei 18 anos de casada. Meu microondas novo quebrou e eu me dei conta de que ele tinha 12 anos. Tenho um novo microondas novo agora, o terceiro ou quarto da minha vida adulta? Vida adulta. Apesar dos oficiais 25 anos de vida adulta, todos os dias eu não sei o que fazer da vida, e essa era a grande sabedoria que eu imputava aos adultos: saber para onde ir. Mas parece que o chão só surge quando a gente pisa.


sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

sábado, 12 de novembro de 2022

Um desejo


Ser bonita que nem Matilde Campilho.
Bonita que nem tenta.
Bonita de já acordar bonita.
Sem dar conta: bonita? só existo, estou aqui.
Bonita pra que os olhos de meu bem olhem por toda parte procurando de onde vem tanta beleza.
E não achem nada. Não vem, é.
Bonita, bonita de cabelo comprido, cabelo crescido, cabelo que não se interroga, cabelo que é.
Bonita como minha mãe.
Ser bonita bonita bonita, bonita de se gastar de escrever escrever escrever, até virar poesia.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Atentar


Atentar para aquilo que desperta dentro o bem-estar. Coisas pequenas que são enormes, do tamanho da importância de refazer as trilhas das conexões cerebrais de modo que aprendemos a sorrir quando sempre aprendemos a precisar.

O vapor da sopa quente que envolve o rosto e penetra as narinas ajudando a respirar. O deslizar do grafite no papel em arabesco porque escrever é desenhar e eu já tinha esquecido. O envolvimento morno que sustenta o flutuar, pintura em negativo que preenche toda reentrância e por um instante suprime todo vazio. O toque da mão quente sobre a pele nua poderoso unguento de dormir em paz.

Questão de treinar o cérebro.

Parece que se você atentar para as belezas do caminho ocorre de se atrasar para o abismo.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Sete minutos


Setembro entrou
e saiu
e ninguém viu
Tenho sete minutos para escrever
E essa é a boa-nova
que não é

sábado, 27 de agosto de 2022

Copos


O corpo tem essa função de salvar a nossa alma.

Se dependesse da minha alma, eu beberia como um russo. Mas preciso intercalar água a golinhos de vinho rosé se não quiser virar um montinho de geleia risonha com a enxaqueca contratada.

Não tem nada a ver com bom senso ou elegância, é apenas um defeito de compleição física.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Púrpura


Quando li O Sol é para todos, quis tanto conversar sobre ele, mas ninguém me deu bola. Fui então puxando os fios dessa solidão e acabei chegando a um clube de leitura, de mulheres, que leem livros escritos por mulheres. Mulheres lendo mulheres. Não talvez porque as mulheres sejam especialmente isso ou especificamente aquilo, mas porque já temos muito dos homens em nós, e ouvir as vozes femininas pode ajudar a nos ver melhor.

Encerramos o semestre lendo A cor púrpura. Um livro sobre Deus, e um livro sobre mulheres. Um livro sobre Deus no qual ele se transmuta em minha irmã. E some. E volta. É o campo. É um de nós.

O fim, mesmo bonito, me é melancólico, como muitas vezes o são os finais dos livros que contam longas histórias de vida. Como me despedir de toda essa gente, depois de tantos anos de convivência? Além disso, olhar para a história de toda uma vida obriga a relativizar tanto. O trauma é uma foto. (Dá bons contos, talvez?) Se só olhamos para ela, só ele existe. Mas se abrimos o enquadramento, se deixamos a fita correr, ele um pouco se dissolve, viver é movimento.

Por isso não morremos. Aquelas que não morremos.

Quem não morre penteia. Celie está sempre penteando cuidadosamente às mulheres, às crianças. As crianças prosperam, Shug não morre, Sofia se levanta. Cuidar da vida com diligência. Leio no Instagram de Debora Diniz que o cuidado é revolucionário. Não sei se entendo nada disso.

Um livro sobre mulheres no qual uma mulher oferece um espelho para que outra possa, pela primeira vez, se ver.

Um jeito bonito de encerrar o semestre. 


quarta-feira, 11 de maio de 2022

Vida de repetição


Há doze anos eu perdi meu bebê.

Agora sei a data e não anoto na agenda, mas lembro. Ou não. Foi uma das datas em que fiquei adulta, e provavelmente a única que eu lembro.

Estou lendo um livro cujo narrador conta suas inúmeras mortes. Morrer é algo que acontece muitas vezes, ele diz, e nem sempre é muito perceptível.

Acho que ficar adulta também é algo que acontece muitas vezes, e nem sempre é perceptível. É parecido com morrer. Que é parecido com nascer.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Meio-dia

 

Uma mulher de meia-idade

de classe média

medianamente bonita

no meio da rua

segura uma caixa de ovos.


E tenta

dedicadamente

não derrubar

nada.


terça-feira, 5 de abril de 2022

Devorada

 

Exausta, deito com meu livro novo, o da antropóloga que sobreviveu ao ataque do urso.

Deito na esperança de adormecer lendo. Adormecer lendo é o refúgio que aprendi na infância. A bondade de um acordo tácito no qual eu finjo que não quero dormir e o livro finge que acredita, me sustentando tranquila e amparada até o sono chegar.

Quando estou cansada, não tenho forças para dormir. Quero demais esse adormecimento quase involuntário, quase narcótico, que chega como se eu não o estivesse esperando, como se acaso fosse.

Acaso não. Um ato de misericórdia do universo que me concede chegar ao sono sem passar pela solidão que o precede. Um sono sem escuro.

Não sei ensinar a adormecer porque sou eu mesma incapaz de adormecer.

O livro me devora: sou sua, não o contrário. Quem espera a compaixão do universo não deve se fiar em livros bons e finos.

Eu queria ser capaz de adormecer.


sexta-feira, 1 de abril de 2022

Fases


Um dia, a mochila rosa cintilante com estampa de lhama se torna simplesmente inaceitável, e mergulhamos juntas na internet em busca de bottons e patches e chaveiros de Harry Potter para criar uma mochila personalizada sem comprar mais uma mochila, e conversamos longamente sobre consumismo e sobre a indústria dos personagens: precisamos aprender a nos inventar e a construir nossa identidade evitando ser capturados por aqueles que já a formataram completamente para nós e estão ávidos por nos vendê-la prontinha. Há que procurar brechas.

Um dia, no parque, a mulher carregando bebê no sling cruza nosso caminho e sorrio cúmplice: veja, minha igual. A jovem mãe com o bebê no colo não me nota e repentinamente me dou conta: não sou mais ela. Tenho os braços livres, mais rugas e meu olhar vai mais longe. O susto: eu não caibo mais ali essa não sou eu quem eu sou? Uma nova identidade, onde vende?

terça-feira, 29 de março de 2022

Minha natureza


Gosto de fazer yoga no parque, sob o dossel das árvores, rodeada pelas plantas que brilham e pulsam quase desordenadamente, alimentadas pela umidade do verão.

Inspiro profundamente o ar claro.

Estendo no chão meu grande tapete.

Passo bastante spray repelente, em mim e nele.

Gosto assim.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Mergulho raso

 

Tenho usado o horário de almoço do home office para nadar na piscina do meu prédio. A América Latina, esse maná de realismo fantástico onde a gente pode unir direitos trabalhistas a privilégios de classe e seguir vivendo como se não precisasse da revolução.

Debaixo d’água, penso no livro que estou escrevendo, sobre maternidade. E me pergunto por que alguém ainda estaria escrevendo um livro sobre isso depois que A filha perdida já foi escrito e filmado.

Fico ainda mais cética de mim mesma quando lembro que desejo escrever um livro sobre maternidade com uma perspectiva positiva. Aparentemente o mundo não precisa disso. Mas eu preciso. Desenhar para mim mesma uma porta, um caminho, uma fagulha de prazer no meio do cotidiano massacrante.

Meu pescoço dói faz quatro meses. Do lado esquerdo. O pé esquerdo também dói, faz mais tempo. Eu acho a coincidência intrigante, mas os ortopedistas não dão a mínima para ela. Suponho que se eu comentasse que as enxaquecas são sempre do lado direito, nem levantariam os olhos do raio-x.

Até porque eles são dois. Um só cuida do pé, o outro não cuida de nada, mas registra a consulta na fatura do plano de saúde. Tudo o que ele pode fazer por mim é aconselhar que eu trabalhe menos e me encaminhar para o RPG, o que até me parece uma ideia honesta. A dor não é exatamente incapacitante, mas é persistente, duradoura, me incomoda há meses. Filmes e séries sobre cirurgiões já me haviam alertado para a possibilidade de que ortopedistas se sintam um pouco entediados a respeito das dores moderadas das editoras de meia idade.

Na piscina, outras mulheres e homens de meia idade leem seus livros, tomam sol, escrevem no computador. Penso na peste que nos permite cuidar da saúde: por causa da pandemia estamos aqui trabalhando na piscina, tomando sol, vendo o céu e imaginando o horizonte. Penso que piscina à tarde é coisa de universitário, como viver de pizza e miojo. Penso no livro que estou lendo sobre uma mulher de meia idade que vive que nem universitário, mas sem piscina à tarde. Penso nas mulheres mais espertas do que eu que elaboram suas angústias escrevendo na terceira pessoa.

Nado para tirar o peso de sobre os meus pés, para que a água me sustente e eu possa flutuar.

É também por que escrevo.



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Transmutação

 

Era uma vez uma mulher que gostava de olhar as copas das árvores balançando, deitada no chão. As copas das árvores não se tocam, elas balançam num movimento coordenado como se cada uma soubesse onde a outra começa e para onde ela vai. Seus contornos se encaixam, como os continentes em deriva, mas elas não avançam umas sobre as outras nem sob o vento tempestuoso.

Era uma vez uma mulher hipnotizada pelo movimento das copas da árvores sob um vento que não existe aqui, só lá em cima. A grama rasteira não sabe o vento que enlouquece as copas das árvores e sua última folha mais alta mais alta mais alta, que balança mais que todas e quer subir aos céus mas não se rompe porque ela é folha mas também é árvore.

Era uma vez uma mulher deitada no chão, sobre a grama, querendo ser árvore.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Tove Ditlevsen

 

Eu não sei:

ser elegante

fazer sala

cantar no tom

 

Não posso deixar de:

beber vinho

usar pontuação

pensar demais

 

Posso:

correr na chuva

morrer de raiva

escrever poemas.

 

e gostar deles

 

 

domingo, 23 de janeiro de 2022

Um brinde à libertação de todos os seres

 

Um livro de memórias comovente; um manifesto feminista preenchido pela concretude de uma vida singular; um depoimento prático sobre o que significa (e o que custa) ter um teto todo seu; uma narrativa em primeira pessoa sobre a São Francisco dos anos 1980 e sua gentrificação; uma reflexão sobre tornar-se adulta e vir a ser a pessoa que se é; um livro de teoria e método, se me permitem um grau de empolgação.


Tenho vontade de indicar a todas as minhas amigas e aos amigos mais especiais. Amigas, leiam. Amigas e amigos da Geografia e da História, em particular, leiam.


Eu nunca tinha passado pela sensação de que a vida fica velha, não nós. Nós que estamos aqui estamos aqui, no presente. Hoje olhei para meu querido tempo de universidade e percebi que ele ficou velho.


Mais que a amigas e amigos queridos, tenho vontade de indicar esse livro para a jovem que eu fui, e me pergunto o que teria feito comigo ler mulheres assim quando tinha 20 anos, evitando encarar o que ainda pode fazer comigo ler mulheres assim aos 40.


***


Rebecca Solnit, Recordações da minha inexistência, Companhia das Letras.


domingo, 12 de dezembro de 2021

Dezembro

Entre eventos e afazeres, votos e balanços, paro por um instante na frase há anos eleita uma favorita: abraço o que existe.

Este ano precisei, por expressa orientação médica, olhar para o horizonte, buscar o céu, inventar sonhos. Achei meu sonho exatamente onde ele estava, minha fantasia no meu mais prosaico.

Eu gosto do que há de prosaico na vida.

O chão é onde sempre mais gostei de estar. É de lá que a gente consegue ver o céu.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

O gosto do tempo

 

Na casa da minha amiga tinha sempre pão com requeijão e bolo de brigadeiro, que a mãe dela fazia. Sempre afundava no meio, e aquele bolo melado e convexo na forma redonda de inox ficou sendo para mim a imagem platônica do bolo de brigadeiro, da qual todos os outros viriam a ser o real que trai o ideal, como ocorre com os namoros e o amor, por exemplo.

Eu cresci com esse bolo, é o que sinto, mas a verdade é que ele entrou na minha vida quando eu já me encaminhava para a adolescência.

Da infância tenho lembranças mais fragmentárias, e não tenho certeza se o bolo da minha avó – recheado sempre com uma lata de leite condensado cozida e coberto de confeito colorido – era mesmo sempre esse ou se sou eu que repito indefinidamente um determinado aniversário estendendo a todos os primos aqueles mesmos confeitos e o encantamento com a habilidade mágica de se cozinhar uma lata e obter o creme denso, macio, brilhante. Episódios limitados ganham perenidade na nossa memória de mortais.

Nunca fui tão de doces, mas coca-cola com chocolate pode parecer o lanche de uma adolescência inteira mesmo se você só o comeu às vezes, no intervalo das aulas da tarde, naquela combinação de prazer e ansiedade que na juventude tem a cara da independência. Quando eu soube que Renato Russo morreu, estava lanchando coca-cola com chocolate. Minha amiga, outra, teve raiva, disse que não o perdoava. Perplexidade às três da tarde.

Quando comi torta de frango com café, sozinha, na mesa de uma lanchonete, fiquei adulta. A gente fica adulta muitas vezes, e é sempre um acontecimento.

Na casa dos meus pais não tinha torta. Tinha a moqueca com o molho denso amarelo pleno, tinha o manjar com as ameixas das quais me aproximei muito lentamente, um aprendizado, tinha churrasco cortado em tirinhas finas e pão com vinagrete que eu como sempre sempre muito. Mas não tinha torta. Torta era comida da rua, comida do mundo lá fora. E eu não tomava café, tomava coca-cola. Por que os adultos tomavam café se tinha coca?

Tomar café com torta de frango na mesa da faculdade combinava muito com o xerox de um cara chamado Jakobson que eu precisava ler e cujo nome não sabia pronunciar.

Hoje sentei num café e pedi um expresso com torta de frango. Me deu saudade.


domingo, 9 de maio de 2021

Maternidade real

 

A maternidade imposta

a maternidade enquadrada

a maternidade patriarcal

ela é um roubo.


Maternidade expropriada.


O horizonte: maternidade gozo.


quarta-feira, 24 de março de 2021

Cores


Dentre as coisas que a quarentena me trouxe, uma dor persistente no pescoço, a vontade de pintar como se eu soubesse fazê-lo, e um punhado de fios brancos pela cabeça, que parecem tanto mais numerosos quanto mais os examino no espelho.


Recentemente notei: os fios não ficam brancos. Ocorre que ganhamos novos fios, brancos desde sempre. Deduzo isso do fato de que alguns deles são curtos, às vezes curtíssimos. Fios tão pequenos como aqueles que ganhamos em algum momento da adolescência quando odiamos nossos cabelos, ou como aqueles que nos vêm após o nascimento dos filhos e quase não notamos, ocupadas com o bebê que nos olha.


Eles são espetados, não se alinham aos demais. Como poderiam?


E eu que queria imitar a moça do filme, de chanel vermelho, agora hesito diante da possível tintura. E se com ela eu acabar perdendo todo o espetáculo?


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Anticlímax

 

Ando pela cidade, oito meses após o início da maior pandemia do último século, que nos legaria um mundo totalmente diferente. 


Tudo parece igual.


domingo, 1 de novembro de 2020

anacrônica

 

sob o céu azul e as folhas que balançam com o vento

melancolicamente

sofro


não há nada

de inteligente

sofisticado 

charmoso

lânguido


sofria-se adequadamente no século XIX


hoje

sob o céu azul e as folhas que balançam ao vento 

como se sofre?


sábado, 29 de agosto de 2020

Cereja


Leio poesia iraniana e desejo aprender caligrafia persa.

Invejo os excelentes

e os serenos.


terça-feira, 19 de maio de 2020

Desencanto


“Ela não vê que toda gente
Já está sofrendo normalmente”

Esses versos me vêm à mente o tempo todo nesta época em que todos anseiam voltar à normalidade.

Normalidade: ganhar as ruas para... o trabalho.

A respeitável reivindicação da rua caminho do trabalho, espaço de consumo.

“Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal”

É desolador revisitar as canções dos anos 1960, 1970. Estava tudo lá, a denúncia, a utopia.

Já estava tudo lá, e nós estamos aqui.

Ela desatina, nós estiolamos.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Onze de maio


Hoje, 11 de maio de 2020, faz dez anos que eu soube que perdi meu bebê.

Levei quase dez anos para dizer "perdi meu bebê".

Eu não sabia a data. Por dez anos eu não soube a data.

Ontem pensei nisso e lembrei que ainda tenho os exames. Revirei a caixa. Em 11 de maio de 2010 fiz o exame que mostrou que não se formou o embrião.

Nunca houve embrião.

Eu estava grávida de um embrião que não havia.

Preciso repetir muitas vezes porque não entendo.

No dia 15 de maio começou o sangramento.

Eu estava no banheiro do CEU Butantã depois de um show do Xangai.

Eu estava em um show quatro dias depois de saber que meu bebê era um embrião que não se formou. Por quê?

Eu não chorei. Estava no banheiro do CEU Butantã saindo de um show, não era conveniente chorar.

Era véspera do dia das mães.

Algumas histórias precisam ser contadas muitas vezes.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Álcool em gel


Hoje decidi colocar o carregador de bebê nas costas e ir caminhar com minha filha mais nova em uma praça vazia. Ela tem estado irritada com a clausura; aponta para a janela e diz: "Eu não quero ficar aqui, quero ir lá". Me corta o coração. Combinei que iríamos, mas ela ficaria o tempo todo no carregador, não poderia brincar sozinha, nós iríamos apenas caminhar e olhar a praça. Ela concordou.

Na praça, contou os cachorros, reparou no parquinho, tem escorrega, tem areia, tem grama. Pediu para andar sozinha; expliquei que não podia, não podia mesmo.

Ela não notou, em frente aos muros ou por entre as frestas dos portões, os seguranças, a empregada doméstica de uniforme, o jardineiro negro carregando um saco de folhas.

Em um bairro rico, uma praça vazia cercada de casas bonitas muito muito distantes daquelas onde vivem as pessoas que das casas bonitas cuidam. E que no final do expediente levarão para seus bairros onde não há praças vazias um vírus vindo de partes do mundo que elas jamais visitarão, estejam os canais de Veneza claros ou turvos.

Na volta, Isabel cochilou no carro, um pouco inconsolável por não poder andar sozinha na grama da praça, e isso é algo para o qual não há mesmo consolo. Assim pôde não observar as três mulheres cercadas de crianças famintas com que cruzamos em um semáforo, outra praça e uma farmácia.

Chegamos em casa, tirei os sapatos, higienizamos as mãos. Haja antisséptico para a gente se sentir limpa neste mundo.

domingo, 15 de março de 2020

Cirandeira



Meu dia hoje começou com uma ciranda.

Elas ainda não sabem, mas tenho para mim a certeza de que em algum ponto de sua vida adulta Teresa e Isabel entenderão que tiveram a graça de passar sua primeira infância não em uma escola, mas no quintal das fadas. E fadas obviamente não iniciam reuniões colocando o projetor de Power Point na tomada. Elas fazem fadices. Ciranda, quando todos pedem que nos afastemos.

Tudo muito responsável, sem beijos ou abraços, e precedido por uma ciosa dose de álcool gel em cada uma das mãos envolvidas. As fadas não fazem discursos, elas mostram o que há para ver: de alguma forma, é preciso dar as mãos.

Eu tenho achado belo, embora profundamente angustiante, o modo como esta epidemia tem colocado cruamente diante de nós o escárnio quanto à crença absurda de que um mundo fundado nas individualidades possa funcionar. Aprendi desde criança: minha liberdade acaba onde começa a do outro. Mas vem o vírus rir de nossa insensatez e lembrar que havia uma outra trilha a seguir, e nós a abandonamos: minha liberdade só existe quando existe a do outro.

Você pode estocar quanto papel higiênico quiser, mas se seu motorista de aplicativo ou sua diarista não pararem de trabalhar – porque obviamente eles não podem, já que não há assistência social que lhes assegure nada –, o contágio vai se ampliar, e a Cuca te pega. Mas pelo menos ainda podemos contar que eles considerem procurar o posto de saúde caso se sintam doentes, já que temos um sistema de saúde universal – coisa que, por exemplo, a America great again não tem.

Fechemos as escolas, mas as crianças não podem ficar com os avós. Veja bem, muitas delas inclusive são criadas pelos avós. Aliás, mais precisamente, pelas avós. Dormem no mesmo quarto, o único disponível.

Governos mobilizam indenizações e fundos especiais para que as pessoas possam suspender o trabalho e se isolar em casa. Não por mera solidariedade aos menos favorecidos, mas porque cada trabalhador que não possa largar o volante por algumas semanas é um espalhador de vírus em potencial. Se ele apenas morresse sozinho, não haveria tanto alarde. Mas não. Aí a beleza do vírus.

Anos atrás, quando minhas preocupações viróticas de mãe de criança pequena na escola concerniam a meros resfriados, ganhei de presente uma linda perspectiva sobre as doenças contagiosas da primeira infância: elas são um instrumento de formação do organismo da criança, de constituição do corpo que será o dela. Não mais apenas as células herdadas dos pais, mas também aquelas que serão formadas no contato entre esse corpo herdado e o mundo. Um novo ser, realmente novo, porque alimentado por aquilo que já é.

Nenhum de nós está sozinho. E não adianta cada um fazer a sua parte.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Autorretrato



Eu sempre fui Atena. Pulei para o mundo diretamente da cabeça do meu pai, toda paramentada e pronta para ser sábia, justa e combativa.

***

Um dia, eu ainda não tinha dez anos, descobri que não poderia haver outro caminho para mim.

Durante a minha infância, na década de oitenta, toda semana chegava em casa uma Veja. No plástico. Naquele dia, uma de suas matérias veio me revelar algo de que ainda hoje não me recuperei. “Loira, burra e gostosa: o que todo homem quer”, dizia a manchete sobre Marilyn.

Antes mesmo de completar dez anos, sozinha, diante de uma revista semanal, eu descobri que não havia nenhuma possibilidade de eu me tornar uma mulher desejável.

Eu já suspeitava: sempre fui a criança inteligente mas que não era bonita.

Doeu tanto, que eu encaixei meu capacete até ele se confundir com minha própria cabeça, e segurei com tamanha firmeza meu escudo e minha espada, que nunca mais tive as mãos muito livres.

Eu era Atena. Se era aquilo que se desejava de uma mulher, eu me conformaria em viver não sendo desejável. Eu me conformaria em viver sendo inteligente mas não desejável.

***

Eu me tornei mãe. E, para muito espanto, a maternidade me foi um lugar de grande conforto. Me descobri acolhedora, agarrada com minha cria.

Atena não teria mãos para isso. Eu tinha.

E colo. Me fiz macia. E redonda. Redonda como a Terra, redonda como a Lua e redonda como Deméter.

Nunca mais desarredondei.

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Deméter chama Afrodite. Essa frase não é minha.

Agora é.