sábado, 4 de outubro de 2025

Chá



Oi, mãe! Tudo bem com você?

Olha só o chá de maçã com os miolos congelados. Hoje coloquei uma casquinha de laranja que chupei com a Bebel e umas lascas dos morangos que a Teresa quis comprar pra fazer bolo. Ela está em busca do bolo de morango e baunilha perfeito, agora é toda sexta uma zona na cozinha.

De manhã fiz o procedimento no hospital. A internação foi toda tranquila, equipe gentil, comida gostosa e ainda tomei um banho pra não vir pra casa com aquela nhaca de sala de cirurgia. Fiquei chocada com a sedação: estava lá na maca com o anestesista pegando a veia na mão porque, segundo ele, o procedimento era deitada de barriga pra baixo e a veia do braço não funciona nessa posição; ele instalou o acesso e... eu acordei no pós-operatório! Parece que umas horas da minha vida foram apagadas. Nem sei se tive a enfermeira mulher acompanhando tudo como manda agora a lei de sedação, confesso que isso me perturba. Mas estou bem.

Esse tratamento é mais ou menos minha última chance de me livrar dessa maldita dor cervical. Ainda não sei se e quanto funcionou, porque estou cheia de analgésicos. Tenho me confrontado com a ideia de que talvez não exista uma curva de melhora à minha frente - existe a possibilidade de que minha situação atual seja a melhor que terei daqui por diante, e a estabilidade talvez seja a hipótese mais amiga pra mim. Isso me apavora, mãe. Me apavora.

Tô descansando agora, deu vontade de tomar meu chá. 

Tenho saudade. Sinto raiva quando lembro que você não vai conhecer meu apartamento novo. Mas acho que o pior é não poder te contar que estou fazendo chá de maçã e que a comida do hospital era boa.

Te amo. Um beijo

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Hospital


Uma vez, há muitos anos, quando eu tinha raiva dos meus pais porque pensava que eles eram tristes, a terapeuta me alertou: em um casamento de tantas décadas, são tantas as cumplicidades. 

Ontem, depois da pior noite, quando a cabeça insone e débil de minha mãe encontrou apoio na testa insone e obstinada de meu pai, eu vi: são tantas as cumplicidades. 

 

quarta-feira, 12 de março de 2025

Perspectiva

 

Na adolescência, acontece o que os neurocientistas chamam de “poda neural”, quando o cérebro perde uma grande quantidade de neurônios relacionados a habilidades pouco ou não desenvolvidas até aquele momento. O cérebro adulto não aguentaria carregar tantos neurônios ligados a habilidades tão variadas, então ele conserva aquilo que parece nos ser mais caro. É mais ou menos isso, segundo a neurociência de Internet à qual tenho acesso.

O conhecimento dessa dinâmica me causa certa ansiedade materna, porque eu não proporciona às minhas filhas a mais variada cartela de experiências que um ser humano pode ter. Elas não fazem aulas extras de música, dança ou desenho, e eu nunca as levei para acampar. O que sobra na poda neural dos pobres adolescentes de apartamento?

Lembro do professor de literatura francesa da faculdade, psicanalista, que dizia: “Dos zero aos sete, gente, está tudo dos zero aos sete”. Mas vem a terapeuta e me lembra: podemos usar essa compreensão para lidar adequadamente com as infâncias sob nosso cuidado e para olhar com gentileza e compaixão para a nossa própria infância – em vez de estabelecer futuros engessados e deterministas a quem quer que seja.

Quando eu era adolescente, acreditava firmemente que meu valor como pessoa estava vinculado ao meu desempenho acadêmico. Os neurônios para vôlei, piano e giz pastel não tinham a mais mínima chance comigo. Ainda hoje me recrimino a contragosto por ter decidido não seguir adiante com o doutorado, por não ter tentado construir o caminho para uma carreira universitária. Tento me convencer de que fiz o que eu queria, mas a juíza que me habita está certa de que fui indolente, encobrindo assim um medo de fracassar. Eu tenho, porém, explorado a possibilidade de que também me habita uma adolescente que gostaria de ter experimentado mais. Que acreditou rápido demais que a roupa muito colada ao corpo era sua pele.

Andei revirando a Internet para descobrir como fazer desenhos em perspectiva. Tenho sentido uma urgência insuportável de “ver” meu futuro apartamento, de ter desenhos e planilhas para onde drenar todas as coisas que do contrário ficam girando dentro da minha cabeça sem sossego nem propósito feito aqueles rolos de feno dos filmes de faroeste.

Divertido e contrariado, meu cérebro foi obrigado a remexer seu baú. E não é que lá no fundo tinha uns neurônios remanescentes para desenho e lápis de cor?