Ajudando a debulhar ervilhas
É quase sempre naquela hora vaga da
manhã, em que o tempo já não tende a mais nada. Esquecida a louça e as migalhas
do café da manhã, distante ainda o perfume quente do almoço, a cozinha fica tão
calma, quase abstrata. Sobre a toalha impermeável, apenas uma folha de jornal,
um punhado de vagens, uma tigela.
Nós nunca chegamos no início da tarefa.
Atravessávamos a cozinha em direção ao jardim, para ver se o correio já tinha
passado...
– Posso ajudar?
Claro. Podemos ajudar. Podemos sentar à
mesa da cozinha e logo encontrar na tarefa aquele ritmo despreocupado,
relaxante, que parece marcado por um metrônomo interno. É fácil debulhar
ervilhas. Uma pressão do polegar na fenda da vagem e ela se abre, tenra,
entregue. Algumas, menos maduras, são mais reticentes – mas basta um corte
com a unha do indicador para rompê-las e sentir a umidade e a carne densa,
sob o falso veludo. Em seguida, deslizamos as bolinhas com um dedo. A última é
tão pequenininha. Às vezes dá vontade de morder. Não é gostoso, ela é meio
amarga, mas fresca como a cozinha das onze horas, cozinha da água fria, dos
legumes descascados – ao lado, na pia, cenouras nuas brilham num pano de prato,
terminando de secar.
Então conversamos aos bocadinhos, e
também a música das palavras parece vir de dentro, tranquila, familiar. De vez
em quando levantamos a cabeça para olhar para o outro, no fim de uma frase; mas
o outro deve manter a cabeça baixa – é a regra. Falamos de trabalho, de
projetos, de cansaço – não de psicologia. Debulhar ervilhas não foi feito para
explicar, mas para seguir o fluxo, em leve contratempo. Poderia tudo levar
cinco minutos, mas é bom prolongar, desacelerar a manhã, vagem por vagem,
mangas arregaçadas. Passamos as mãos pelos grãos debulhados que enchem a
tigela. É macio; todas essas curvas contíguas formando como que um lago verde
tenro, e ficamos espantados de não sair com as mãos molhadas. Um longo silêncio
de claro bem-estar, e então:
– Só falta buscar o pão.
DELERM, Philippe. La première
gorgée de bière et autres plaisirs minuscules. Paris: Gallimard, 1997.
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Tenho adorado as aulas de prática de tradução. As pessoas têm ideias tão boas, e o compartilhamento vai gerando insights. (Devíamos fazer grupos de prática de várias coisas, com múltiplos insights para a vida...)
Quanto ao texto, que difícil chegar à leveza do original... A naturalidade do ato transferida à palavra, elegante.