domingo, 5 de abril de 2015

Bed time


Estou terminando de ler Guerra e Paz. Apesar da celebridade da obra, confesso que não sabia bem do que tratava, comecei a ler assim no escuro, e fiquei surpresa em encontrar, ao lado de páginas de estratégia militar, descrições da vida familiar mais íntima. Acabo de ler uma cena em que as crianças dizem boa noite aos adultos na sala e se retiram para dormir. Lembro daquela cena fofa de A Noviça Rebelde em que os rebentos da família Von Trapp dizem boa noite tão charmosamente e se recolhem um a um, deixando a festa pela escadaria.

Todos foram deitar há quase duas horas, e eu ainda não consegui dormir. Pegar no sono é uma questão que me acompanha ao longo da vida. Ou melhor, não pegar. Hoje brigo menos com a minha insônia: tento entendê-la como um aspecto da minha pessoa, que se reveste de diferentes significados ao longo do tempo. Atualmente, ela é às vezes a oportunidade de ficar só, de voltar-me a mim. Aquele momento em que, tendo a filha ido dormir, posso me focar com mais tranquilidade em certas coisas, relaxar, saber que posso fazer algo sem ser interrompida.

Sempre ouvi que é importante as crianças terem uma rotina sólida e própria, e que elas precisam ir para a cama mais cedo, pois isso é essencial para o seu desenvolvimento saudável e também para que os pais tenham esse momento de sossego no encerramento do dia. (E para que possam ser um “um casal”. Essa é uma questão que bem merecia um texto. A “busca pelo casal perdido” me parece uma luta perdida: há que se inventar o novo casal...). Bem, em nossa casa, nada disso acontece. Nosso cotidiano e disposições pessoais não convergem para isso. E não acreditamos nessa premissa absoluta que liga o desenvolvimento saudável do ser humano a essa concepção de rotina da criança.

Penso que é sempre bom ver com alguma desconfiança (isto é, com sentido histórico e social), as recomendações de especialistas e autoridades sobre o que é saudável. A recomendação de nunca comer manga com leite, por exemplo, mais do que zelar pela saúde de quem quer que fosse, cuidava de garantir que os escravos consumissem as abundantes mangas dos engenhos e evitassem o leite, alimento então caro e raro, reservado aos senhores. Podemos nos perguntar: é realmente o desenvolvimento saudável das crianças que requer que elas tenham uma rotina rígida e própria (própria no sentido de que é apartada da do resto das pessoas, veja bem, e não no sentido de que emana da criança), ou somos nós, pais, que precisamos que elas durmam mais cedo, para podermos encerrar nosso dia mais sossegados? (E com esse questionamento não tenho a menor intenção de desmerecer as necessidades dos pais, mas há que encarar as coisas como são, e agir de acordo.)

De minha parte, não me parece uma relação adequada colocar minha filha sozinha em um quarto escuro para dormir no horário estipulado por mim, a fim de que eu possa “ter a minha vida”, a pretexto de que isso é necessário para ela ter um desenvolvimento saudável. Então fazemos como dá, e isso às vezes significa dormir todo mundo na mesma hora, porque quando ela dormiu eu já não tenho mais ânimo para nada; em outras, dar uma esticada até mais tarde, porque a criança dormiu mais tarde do que me seria conveniente e eu quero ter o meu “depois”. O que pode significar insônia, textos escritos na madrugada...

E fico pensando como eu gostaria de conhecer mais a história da vida privada infantil. De que modo se lida com essa questão nas diferentes sociedades do mundo hoje, e nos diferentes tempos históricos? E então voltamos a Guerra e Paz e A Noviça Rebelde. Nessas representações da vida aristocrática, as crianças se retiram lindas e fofas na sua “bed time”, deixando assim os adultos à vontade para as atividades de adultos. Mas – isto é crucial! – elas vão com seus preceptores e governantas. Os quais, por sua vez, devem provavelmente dormir tarde, como eu, fruindo somente depois de acomodar as crianças o seu momento de sossego. Essa mãe aristocrata pode entregar-se a sua vida de adulta não porque as crianças foram dormir, mas porque elas estão sob o cuidado alheio. A mãe sem preceptores, governantas e babás, para ter o tal sossego depois das crianças, pode desdobrar-se a fim de fornecer ela mesma o cuidado ao filho e fruir seu momento individual em seguida, se tiver energia para isso. Ou pode colocar seu filho no quarto, fechar a porta e deixar que ele arranje por conta própria os meios para tranquilizar-se diante da solidão e entregar-se ao sono. Mas para isso precisa acreditar que colocar seu filho sozinho no quarto escuro é bom para ele, e não apenas para ela. Fazendo a fama e a fortuna de todo tipo de especialista treinador de bebês.

Cada família pode encontrar o caminho, a estratégia, o instrumento que melhor lhe cabe. Acho que eles são muitos e variados. Tenho aprendido duramente que os melhores resultados vêm da mais profunda sinceridade, do reconhecimento e respeito daquilo que pensamos e, sobretudo, sentimos. Recomendações enrijecidas e generalizadas servem mais para fragilizar nossa própria capacidade de reconhecer nossas necessidades e produzir nossas soluções, do que para nos fornecer de fato soluções satisfatórias.

Na nossa fantasia da criança bem educada – reforçada por tantos filmes e especialistas –, recorta-se o modo de vida de uma elite que pode compartilhar ou delegar o cuidado da criança, e define-se isso como normalidade. E nós, vivendo em circunstâncias bem diferentes, nos exaurimos correndo atrás de uma pretensa normalidade que não tem nada de normal. Aquelas crianças impecáveis subindo a escada sozinhas para dormir não estão sozinhas. A babá as observa e as segue. E nós, que temos de lidar muitas vezes sozinhos não só com as crianças mas também com as escadas, ficamos aqui embaixo nos perguntando o que fizemos de errado, já que nossos filhos não são tão impecáveis...

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Torta de liquidificador


Um jantar contra o desperdício de comida, aproveitando as sobras da geladeira (na minha época, seria economia doméstica, mas hoje acho que colocariam como educação ambiental).

Coloco uma tábua para mim e outra para ela, pois picar ingredientes é, atualmente, a brincadeira mais esperada de todas as noites (desenvolvimento da coordenação motora fina).

Começamos com a sobra dos legumes assados do jantar de ontem. Com a faquinha redonda e quase sem fio, ela vai picando cada um em pedaços ainda menores e, no afã de picar infinitamente, preciso lembrá-la de que não podem ficar pequenos demais – senão queima, não é, mamãe? Mostro um exemplo: devem ficar deste tamanho (reconhecimento de formas e proporções).

Juntamos um pedaço de queijo branco quase perdido e uma bandeja de salame fatiado que ia pelo mesmo destino (aprendendo diversidade e tolerância, nada de “tribos”, afinal aqui em casa a gente gosta de legumes mas não é nada macrô). Enquanto pica, vai comendo pedacinhos de brócolis e couve-flor (nem é educação alimentar, é prática sensorial hedonista: ninguém ainda contou pra ela que a gente come legumes porque são saudáveis, e a menina segue achando que são apenas gostosos).

Deixo-a preparando o recheio e vou começar a massa (trabalho em equipe). Ela está muito atenta a sua tarefa (desenvolvendo a capacidade de concentração – esses especialistas que dizem que uma criança só consegue se concentrar numa tarefa por três minutos deviam puxar uma cadeira e observá-la desfazer uma cabeça de alho, esse brinquedo de montar que os adultos usam pra temperar comida). Vou colocando tudo no liquidificador, e ela se mantém atenta a sua tarefa. Mas quando vou quebrar os ovos, titubeia: quebrar ovos é tão legal que talvez valha a pena parar de picar (aprendendo a enfrentar dilemas e tomar decisões).

Observo que o salame está difícil, e concluo que foi ambição demais praquela faca cega – o salame a mamãe vai ajudar a terminar, está bem? (aprendendo a lidar com limites e frustrações)

Vamos colocando toda a parte picada em uma travessa. Um pouquinho de sal e pimenta-do-reino. Eu coloco, mamãe! (opa, desenvolvendo a individuação, ai meus sais). Um pouquinho de cheiro verde (absorvendo as práticas das gerações anteriores – gastronomia às vezes é legal, mas a comida também é o bastão da avó). Misturamos tudo bem misturado, sem deixar cair fora da tigela (desenvolvimento da lateralidade, dentro e fora, na frente, ao lado).

Hora de colocar tudo na travessa. Primeiro um pouco de massa, depois o recheio, distribuído em colheradas, e depois o resto da massa (noções de sucessão, todo e parte). No forno você não pode mexer, ele queima (olha o tal do limite aí, gente!, e até umas noções de termodinâmica, só pra incrementar a brincadeira, vai...).

Agora precisamos esperar a torta assar. Demora? Demora! (aprendendo a esperar, claro!)

Enquanto esperamos, não custa misturar umas alfaces e picar aqueles aspargos pra uma salada. Não amassa o aspargo, que meleca! (experimentado diferentes texturas). Mas eu só vou comer torta, tá bom, mamãe?, não quero salada...

No final, comeu torta e salada, porque para incentivar uma criança a comer salada, nada melhor do que uma mãe comendo salada com prazer e alardeando que não vai sobrar nem um pedacinho...

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Aí colocam as crianças em um quarto forrado de EVA, cheio de plástico colorido e com barulhos repetitivos, e chamam isso de “ambiente seguro”, “atividade lúdica” e “brinquedo educativo”. Faz-me rir, como dizia meu pai.