sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Gente

 
Eu não tenho muito timing. E ainda não fui ver outro filme. E ainda tem gente falando de Bacurau ao meu redor. “Bacurau” que pra mim era um peixe mas descobri que é uma ave.

Quando eu disse do meu choque pois sou a motoqueira, as pessoas riram simpáticas e complacentes. Me conforta. Veja bem, eu sei que não sou a burguesia nacional que pensa que é branca. Mas eu também não sei bem onde cavar. Aquele filme é sobre a força que tem quem sabe onde cavar. E sobre a tragédia de quem acha que não precisa.

Entre outras coisas, pois não é cartilha. Eu acho. Mas a gente quer cartilha. Porque a gente segue a cartilha. Resistência popular! A gente denuncia a cartilha. Incitação à guerra civil! Mas não cava.

Oras.

A banalidade do massacre. Não é 1960. Passamos historicamente do exército de reserva para a população sobrante. Não é exploração, não é controle da rebelião social, é massa desumanizada a ser gerida ou exterminada, o que der. Os livros de geografia falam que as cidades asiáticas são formigueiros. Foto do alto. As cidades asiáticas. Manhattan não.

E aquela abertura cafona. Fica a voz da Gal Costa me perturbando até hoje e eu penso “Tão lindo aquilo lá”. Os pontos luminosos lembram minhas viagens de infância quando eu via as luzes das cidades ao longe. As luzes de um vilarejo transmutadas nas luzes do mundo inteiro. É uma brincadeira com escalas linda.

Borrar a distinção das escalas. Evocar a simultaneidade como aspecto essencial do espaço-tempo do capital. Não tem cidade pequena, média e grande. Não tem país subdesenvolvido, em desenvolvimento e desenvolvido. Não tem etapa rumo ao equilíbrio. O que tem é uma lógica, uma, que produz o vilarejo e o mundo inteiro. Uma lógica que sustenta e é sustentada pela existência simultânea da civilização e da barbárie.

População sobrante não é gente. Quem nasce em Bacurau é o quê?
 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Contar


Faz dois anos que Isabel nasceu. Faz dois anos que eu queria contar essa experiência inadjetivável que foi parir uma criança. Contar é uma forma de entender.

Logo depois do parto eu ficava constantemente pensando "Por que eu fiz isso?"

E na minha avó, minha avó, minha avó.

Minha avó passou quinze, vinte anos grávida. Grávida e parindo. Grávida e parindo. Sem escolha. Grávida e parindo.

Minha mãe não pariu. Minhas tias não pariram. Como poderiam?

Eu pude.

Mas ainda não sei contar.