sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Exercício de tradução



Ajudando a debulhar ervilhas

É quase sempre naquela hora vaga da manhã, em que o tempo já não tende a mais nada. Esquecida a louça e as migalhas do café da manhã, distante ainda o perfume quente do almoço, a cozinha fica tão calma, quase abstrata. Sobre a toalha impermeável, apenas uma folha de jornal, um punhado de vagens, uma tigela.

Nós nunca chegamos no início da tarefa. Atravessávamos a cozinha em direção ao jardim, para ver se o correio já tinha passado...

– Posso ajudar?

Claro. Podemos ajudar. Podemos sentar à mesa da cozinha e logo encontrar na tarefa aquele ritmo despreocupado, relaxante, que parece marcado por um metrônomo interno. É fácil debulhar ervilhas. Uma pressão do polegar na fenda da vagem e ela se abre, tenra, entregue. Algumas, menos maduras, são mais reticentes – mas basta um corte com a unha do indicador para rompê-las e sentir a umidade e a carne densa, sob o falso veludo. Em seguida, deslizamos as bolinhas com um dedo. A última é tão pequenininha. Às vezes dá vontade de morder. Não é gostoso, ela é meio amarga, mas fresca como a cozinha das onze horas, cozinha da água fria, dos legumes descascados – ao lado, na pia, cenouras nuas brilham num pano de prato, terminando de secar.

Então conversamos aos bocadinhos, e também a música das palavras parece vir de dentro, tranquila, familiar. De vez em quando levantamos a cabeça para olhar para o outro, no fim de uma frase; mas o outro deve manter a cabeça baixa – é a regra. Falamos de trabalho, de projetos, de cansaço – não de psicologia. Debulhar ervilhas não foi feito para explicar, mas para seguir o fluxo, em leve contratempo. Poderia tudo levar cinco minutos, mas é bom prolongar, desacelerar a manhã, vagem por vagem, mangas arregaçadas. Passamos as mãos pelos grãos debulhados que enchem a tigela. É macio; todas essas curvas contíguas formando como que um lago verde tenro, e ficamos espantados de não sair com as mãos molhadas. Um longo silêncio de claro bem-estar, e então:

– Só falta buscar o pão.


DELERM, Philippe. La première gorgée de bière et autres plaisirs minuscules. Paris: Gallimard, 1997.


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Tenho adorado as aulas de prática de tradução. As pessoas têm ideias tão boas, e o compartilhamento vai gerando insights. (Devíamos fazer grupos de prática de várias coisas, com múltiplos insights para a vida...)

Quanto ao texto, que difícil chegar à leveza do original... A naturalidade do ato transferida à palavra, elegante.