domingo, 29 de dezembro de 2013

Um viva à livre circulação


Em julho, quando percorremos vários milhares de quilômetros para conhecer a belezura da Chapada das Mesas, realizando um circuito que atravessou os estados de São Paulo, Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí, Baía, Minas Gerais e Rio de Janeiro, Teresa voltou de viagem sabendo falar "mamão" e "Maranhão".

Neste Natal, demos um pulinho aqui no interior de São Paulo para visitar a família. Na volta, mais ou menos em Caieiras, Teresa soltou a nova palavra aprendida na viagem: "pedágio".

(p.s.: este não é um post patrocinado, e eu juro que a história é verdade...)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Kiwi e o mundo lá fora


Eu nunca gostei de kiwi. Me pergunto quem foi o primeiro ser humano a ter a ideia de abrir aquela bolinha peluda para ver se era bom de comer. E achou que era, a despeito da polpa aguada e das irritantes sementinhas crec-crec (também não gosto das do maracujá). Não, obrigada, posso ter minha parte em manga?  Daí que nunca houve kiwi na minha casa, nunca pedi no restaurante, nunca peguei no bufê de café da manhã do hotel. Pois um belo dia eu pergunto à minha filha o que ela quer comer, e ela responde "Ií". Hã, kiwi? Não tem kiwi, filha... E num outro dia, olhando a fruteira da casa de uma amiga, a menina me arregala os olhos com um sorriso de orelha a orelha e aponta: "Ií!". De onde veio isso, jizuis?!...

Antes que me venham com respostas místicas, já respondo: veio da escola. Uma das coisas legais da escola da Teresa é o lanche coletivo, cheio de frutas e comidinhas bacanas, que eles compartilham sentados à mesa. E lá ela conheceu a frutinha peluda que nunca passou pela minha porta. E foi por conta de um desses episódios do kiwi que me dei conta (da obviedade) de que a escola é um local para ampliar horizontes, encontrar coisas novas, conhecer aquilo que... não sou eu, ops!

Talvez este seja o aprendizado mais fundamental e mais difícil da condição de mãe (e pai, também, na sua medida, imagino): saber seu filho como outro, entender a presença nova que ele significa no mundo, e permitir que ele aprenda a se ligar a esse mundo com seus próprios recursos. O pediatra de uma amiga lhe disse, no momento em que se aproximava o fim do aleitamento exclusivo de seu bebê: está na hora de apresentar seu filho às cores do mundo.

Sempre que eu olho para os ombros de minha filha, desenhados pelo mesmo pincel que pintou seu pai, me lembro de que ela não é minha. Ela só existe porque minha história se entrelaça com outra história. Ela é parte de uma história nossa. E o kiwi veio me ensinar que a cada dia ela constrói mais um pedacinho de uma história sua.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

E se nos obrigassem a comer?


Já ensaiei várias vezes escrever aqui alguma coisa sobre alimentação e alimentação infantil, porque pensar na introdução alimentar da minha filha (e realizá-la) me fez refletir sobre tanta coisa, das mais diretamente relacionadas até outras que podem ser uma viagem... Mas justamente por isso acho que nunca consegui achar um foco para puxar o texto, que portanto nunca saiu.

Comecei a pensar sobre como seria a introdução alimentar da Teresa muito cedo, as pessoas até riam de mim... Tenho algumas teorias sobre por que esse assunto me tomou tanto, mas agora não vêm ao caso. Doida atrás de materiais de referência mais interessantes do que listas de horário de papinhas e truques para fazer seu filho comer verdura, descobri o Carlos González, um pediatra catalão genial que coloca em questão a própria pediatria e toda a montanha de chavões sobre a infância repetidos por aí em nome da ciência. E o homem ainda tem um texto leve e engraçado.

Difícil encontrar seus livros em português, mais ainda português do Brasil. A gente acha fragmentos traduzidos informalmente aqui e ali, em sites sobre infância e maternidade. Não sei dizer bem quais de seus livros têm tradução publicada em português, mas Mi niño no me come, que fala mais especificamente sobre alimentação infantil, não encontrei traduzido.

Então semana passada recebi uma amiga que começa a se preocupar com a passagem de sua filha para o mundo além-peito. E ela veio comentar comigo sua impressão de que as crianças que são deixadas livres para comerem sozinhas – prática adotada aqui em casa bem freestyle, acreditando eu que se tratava apenas da opção mais simples, menos intervencionista e mais “natural” (eu sei, eu sei, palavra péssima...), e que depois essa mesma amiga me revelou que já foi catalogada e rotulada com o pomposo nome de baby led weaning (tem até sigla: BLW!) – comem menos. Rsss... Os avós de Teresa não se cansam de fazer essa observação, e ficam numa felicidade só ao sentá-la no colo e vê-la aceitar de bom grado as colheradas de almoço ou os nacos de fruta... Até eu, que certamente sou mais boba que minha filha, acho bom se de vez em quando alguém vier me mimar com pedacinhos de queijo prontos para degustação, uvas já tiradas do cacho, garfadinhas de amor na minha boca, hã? Mas ceder o controle do meu prato o tempo todo certamente me irritaria!

Confesso que eu também tenho essa impressão de que comendo sozinhas as crianças comem menos. Mas o que importa é: por que a gente quer que elas comam mais?! Ah, por vários motivos, dos mais aos menos neuróticos, penso. Eu também não estou livre da coisa, tenho que me controlar, também quero que ela coma só mais uma colheradinha, filha, a última... Pois González parte justamente dessa preocupação de que a criança não come o suficiente – preocupação que segundo ele dá mais que chuchu na cerca na cabeça das mães contemporâneas –, para discorrer sobre as implicações éticas e práticas de obrigar crianças a comer (e ele inclui aí os truques para “obrigar” de mansinho, também), sobre os fundamentos científicos que sustentam (ou não) as práticas de alimentação infantil que adotamos hoje, e – o mais legal – sobre o momento histórico em que essa preocupação de que a criança coma mais se generaliza, se consolida e vira inclusive uma questão para especialistas. Não foi sempre assim, sabia? Eu não sabia... Até o século XIX, a preocupação era que as crianças pequenas não comessem demais, quem diria! (A chave está no advento da indústria de leite em pó, claro.)

Para encerrar seu livro, o autor escreve um epílogo chamado “E se nos obrigassem a comer?”, um conto que satiriza nosso desejo de poder e controle sobre a criança – questão sempre presente em seus textos, pelo menos os que li. Já que as editoras não publicam o livro, faço aqui mais um exercício de tradução. Eu ia adorar traduzir as obras completas do homem.


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O dever da Brigada Nutricional

O sol brilhava no alto de um céu sem nuvens, e o ar trazia o cheiro de grama recém-cortada, quando Edmundo Tavares decidiu entrar no Carpa Dourada, um restaurante agradável e não muito caro. De sua mesa, Edmundo tinha uma bela vista do parque e das magnólias em flor. Bom observador da natureza humana, ele preferiu, no entanto, sentar-se de lado, voltado para o interior do restaurante.

A clientela era tão variada quanto fascinante. Em frente a ele, um indivíduo gordo e suado comia veloz e ruidosamente, parando apenas para tragar incríveis quantidades de vinho barato. Por alguns segundos, Edmundo acompanhou como em sonho os movimentos de sua papada, uma massa esbranquiçada e ondulante como duna de finíssima areia. Não era certamente um espetáculo para entreter alguém por muito tempo, e Edmundo logo ignorou seu rechonchudo parceiro para observar uma jovem muito delgada, quase etérea, na mesa ao lado. “Delgada, quase etérea... meio cafona”, disse consigo mesmo. Quantas vezes lera essa descrição em algum livro, e “etérea” associava-se em sua mente a um matiz filosófico ou religioso, talvez sobrenatural. Agora, vendo aquela menina pálida, o olhar perdido em sabe Deus que estranhas reminiscências frente ao prato de macarrão quase intacto, compreendeu que “etérea” tinha aqui um significado muito mais terreno, simplesmente incorpóreo no sentido de não ter corpo, como naquela piada de seus dias de escola: “Anda mais magro que a radiografia de um suspiro”.

No centro do salão, junto à carpa dourada que dava nome ao local, um grupo de executivos impecavelmente vestidos (embora a mulher se distinguisse por não usar gravata) discutia acaloradamente sobre estatísticas e documentos que quase escondiam os pratos e os telefones celulares. Edmundo sorriu, pensando nos preciosos contratos manchados de tomate e gordura. Mas não, são profissionais, claro que podem ler um relatório em cima de uma saladinha de batatas sem o menor acidente.

Mais além, num canto discreto, um casal de noivos entreolhava-se feito bobos, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa. Então agora retornam a entrelaçar as mãos sobre a mesa... que voltas o mundo dá! Ou foi sua geração que teve poucas oportunidades de entrelaçar qualquer coisa em outros lugares? Será que estou ficando velho?, pensou, lembrando-se de outras mesas, outras mãos.

Não era fácil perder-se em devaneios, pois a todo momento o chamavam de volta ao mundo as risadas e gritos de um ruidoso grupo de estudantes, numa mesa logo atrás. Olhou-os de soslaio, discretamente. Eles faziam piadas, barulhentos, despreocupados, sem ligar para convenções sociais ou para o medo do ridículo. Como sempre ocorria quando observava um grupo de jovens, ele teve a impressão de ver um rosto conhecido, descartando em seguida a ideia ridícula: não, eles também teriam agora quarenta anos.

Tinham acabado de lhe trazer a salada, quando um silêncio denso e frio se espalhou pela ampla sala de refeição, como ondas em um lago. Os temidos uniformes pretos da Polícia Nutricional rapidamente tomaram posição. Ele não os viu chegar pelo parque, com certeza tinham entrado pela porta dos fundos. Eram meia dúzia de agentes, comandados por um tenente muito jovem e bem composto. Esses oficiais recém-saídos da academia, rigidamente severos e ansiosos por justificar seus galões, eram sempre os piores. Até seus próprios homens estavam atemorizados. Não deixariam passar nada.

Uma agente de meia-idade dirigiu-se rapidamente para a mesa dos executivos. Eles não tiveram tempo de guardar seus contratos e relatórios, que foram bruscamente apreendidos. “Mesa não é lugar de brincar!” O mais jovem tentou esboçar um protesto, mas a mulher o deteve com um gesto imperioso. Qualquer resistência era inútil. Se mostrarmos total submissão e comermos sem reclamar, talvez nos devolvam os documentos depois da sobremesa.

Os gracejos cessaram na mesa dos estudantes. Uma prisão como maus comedores poderia significar a desonra de suas famílias e a expulsão da universidade. Comiam muito eretos, em absoluto silêncio, levando ritmadamente à boca o garfo ou a colher. Será que estavam eretos demais, ou comiam excessivamente em uníssono? Os braços subiam e desciam com precisão coreográfica. O agente que os observava tinha uma vaga suspeita de que estavam zombando dele, entretanto por mais que se esforçasse não conseguia encontrar nada de decididamente ilegal na atitude dos rapazes, então resolveu dar as costas e ignorá-los. Várias pessoas nas mesas vizinhas reprimiam um sorriso de aprovação: talvez no fim das contas esta juventude valha mais do que parece.

Ouviram-se gritos vindos da cozinha. Em todos os restaurantes as equipes apressavam-se em sumir com qualquer resto de comida pelo ralo, mas desta vez a inexperiência de um dos ajudantes permitiu que a PN encontrasse um prato com meia porção de canelone. As leis que proibiam deixar comida no prato eram implacáveis​​. O proprietário se desmanchava em explicações.

– Sempre cumprimos as regras, vocês sabem. O cliente se recusou a terminar e fugiu, não tivemos como evitar. Ainda não houve tempo para preencher o formulário de denúncia, precisamente por isso guardamos o prato. Temos de fotografá-lo para registro... Mas estamos limpos, olhem o cesto de descartes, vaz...

Com um gesto dramático, o proprietário mostrou o cesto, e as palavras morreram em seus lábios. Restos de guisado! O novo lavador de pratos tinha cometido outro erro, e este poderia ser fatal. O sargento os fuzilou com os olhos, exigindo uma explicação. Antes que alguém conseguisse sair da paralisia, o funcionário se adiantou, tremendo:

– Tive de jogá-lo fora, pois deixei um prato cair no chão. Mas não quebrou.

– Comida não se joga fora! – rugiu o proprietário. – Outro erro e você está demitido.

Em seguida, voltando-se para o misericordioso sargento:

– É novo; é cada vez mais difícil encontrar funcionários bem preparados.

Mas ele não deixou de notar, satisfeito, a rapidez do rapaz em consertar seu próprio erro e inventar uma desculpa. Naqueles tempos, sempre sob a ameaça de ver o restaurante expropriado e colocado sob controle direto da PN, a astúcia e o reflexo rápido eram qualidades valiosas.

Edmundo Tavares não perdia nenhum detalhe do que se passava no salão, sem deixar nem por momento de prestar uma atenção aparentemente total em sua salada. Ficou satisfeito com sua escolha: uma refeição leve, mas que estranhamente sempre contava com a aprovação da PN. Os nutricionais são fascinados pelo verde. Os dois pombinhos tinham soltado as mãos imediatamente, mas não conseguiam evitar um olhar encantado de vez em quando. A agente que fora tão severa com os executivos parecia agora inclinada à condescendência, mas um olhar frio de seu tenente lembrou-a de seu dever. Postou-se junto à mesa e começou a marcar o ritmo com voz estridente.

– É para comer e ficar quieto! Colher no prato, colher na boca, uuuum, doooois, colher no prato, colher na boca, uuuuum, dooooois.

O gordo sentado em frente a Edmundo estava muito nervoso e olhava os policiais com ávida dissimulação. “Está tentando ver as insígnias”, logo percebeu. “Deve ser meio míope.”

Os nutricionais SS (Super Sebo) exigiam um peso superior à média, e quanto mais alto melhor; mas estavam sempre em conflito com os nutricionais SA (Sempre Atléticos), para os quais o peso ideal estava entre os percentis 25 e 75. Em consequência dessas lutas internas ao regime, a vida dos indivíduos com peso acima do percentil 75 ou entre os percentis 25 e 50 tornara-se bastante difícil. Mas não tanto quanto a dos infelizes que estavam abaixo do percentil 25; a maioria tinha conseguido se exilar antes do fechamento total das fronteiras.

Desta vez eram nutricionais SS, e o gordo tranquilizou-se, sabendo-se seguro. E foi além, atrevendo-se a dar um passo sempre arriscado:

– Garçom, esta perna de cordeiro estava excelente. Poderia repetir?

O desagrado do garçom era evidente, mas ele não tinha escolha. Com a PN SS no local, a repetição estava garantida. O proprietário em pessoa trouxe, sorrindo, a nova porção. Mas a vingança foi sutil: o prato estava completamente cheio. O gordo empalideceu ao vê-lo; queria apenas “mais um pouquinho”, mas aquilo era demais. E deixar algo que ele mesmo tinha pedido era o pior dos crimes.

Quando o proprietário se arrependeu, já era tarde demais. O objetivo do homem, percebeu ele, não era aproveitar-se da situação, mas apenas proteger-se. Perseguidos pela SA, a única salvação dos obesos era ter amigos na SS. Subitamente envergonhado, tentou oferecer uma saída:

– Desculpe, senhor, mas acabou nosso pudim com creme – murmurou cordialmente. – O senhor terá de pedir outra sobremesa. Sugiro um suco de laranja.

– Tudo bem – respondeu o obeso, e podia-se ler a gratidão em seus olhos.

Talvez assim conseguisse terminar a perna de cordeiro. E aplicou-se a ela.

O tenente estava agora ao lado do aquário.

– Por que esse peixe não está comendo?

– Acabou de comer – desculpou-se o proprietário –, mas não importa.

Pegou um pouco de comida para peixe num pacote e jogou na água. A carpa se apressou em devorar a ração.

– As carpas têm sempre um espacinho vazio. Por isso as escolhi como símbolo do meu estabelecimento.

O tenente quase sorriu. “Foi uma boa ideia comprar a carpa”, pensou o proprietário, esperando que o incidente do guisado no lixo fosse totalmente esquecido.

Mas o olhar frio do tenente estava cravado na jovem esguia. O silêncio tornou-se ainda mais ameaçador. Não só parecia estar abaixo do percentil 25 (os enchimentos da roupa de baixo não conseguiam esconder a magreza das bochechas), como seu prato estava muito cheio, e ela comia com desesperadora lentidão. Mesmo àquela distância, Edmundo podia dizer que a menina suava, e ele parecia ouvir as batidas de seu coração.

Depois de contemplá-lo por alguns segundos eternos, o tenente fez um gesto para um dos policiais, que se aproximou decidido.

– Venha, coma um pouco, está muito bom. Assim, muuuuito bem. Você precisa crescer, colocar um pouco de carne nesses ossinhos. Vamos, outra colheradinha, iiiisso, fica tão linda quando come. Está cansada, meu amor? Eu te ajudo, me dá o garfo. Olha o aviãozinho, brrrrrr brrr! Um avião de macarrãozinho para a minha menina! Muito bem! Olha, um passarinho na janela, que passarinho lindo. Viu como abre o biquinho? Muuuito bom, um pouquinho mais. Agora mais um pouquinho paaaara a vovó, e este outro pouquinho paaaara o papai... Venha, não vamos deixar esse macarrãozinho tão gostoso. O cozinheiro preparou com taaaanto carinho. Isso, muito bem, falta pouco. Não quer ir ao cinema mais tarde? Então primeiro tem que terminar a comidinha, para ficar fooorte. Ai, que linda, como come a minha menina!

Lenta, penosamente, o macarrão foi desaparecendo, então o agente da PN passou o pão no molho e enfiou na boca da mulher apavorada. Agora falta o bife com batata! Edmundo, como muitos outros clientes do restaurante, prendiam a respiração. Era evidente que ela não conseguiria terminar o segundo prato.

O garçom trouxe a carne. Ele serviu o menor bife possível e a quantidade mínima de batatas, e lançou para a jovem um olhar de cumplicidade. Ela só conseguiu esboçar um sorriso de agradecimento; a porção ainda estava bem acima de suas possibilidades, e o garçom sabia disso. Mas não podia se expor mais; em várias ocasiões, a PN já havia mandado pesar porções suspeitamente pequenas.

O agente cortou a carne em pedacinhos minúsculos, e retomou sua interminável ladainha. Mas as colheradas eram cada vez mais penosas, e cada vez mais palpável o terror de um e a cólera do outro. Edmundo, como os outros clientes, tentava concentrar-se em seu próprio prato, no ritmado vai e vem do garfo. Não ver, não ouvir, não pensar. Simplesmente sobreviver. Quantas vezes Edmundo sonhara com um gesto heroico, um arrebatamento de dignidade; levantar e gritar: “Deixe a menina, deixe-a em paz”. Em vez disso, teve de engolir sua própria covardia e escutar o que o policial dizia à mulher:

– Está vendo como come esse senhor? Ele sim é bem comportado! Vamos lá, você tem que ficar grande, como esse senhor!

A jovem, com o olhar perdido no vazio, abria e fechava mecanicamente a boca, enquanto duas lágrimas caíam sobre uma das bochechas que inchava perigosamente. “Faz tempo que não engole”, pensou Edmundo. De repente, com um ruído estremecedor, mescla de tosse e náusea, a mulher deixou cair uma bola de carne ressecada e dolorosamente mastigada.

– Tenente, ela está fazendo bola!

O oficial se aproximou decidido. Uma sonora bofetada quebrou o consternado silêncio. Acabou, pensou Edmundo, acabaram os aviõezinhos e as palavras amáveis. Não havia piedade para os terroristas do BOLA (Bloco de Oposição pela Liberdade de Alimentação). Ele sabia o que estava por vir: iam obrigá-la a engolir a bola repugnante e todo o resto da carne. Abririam sua boca à força, afundando com dedos de ferro as bochechas entre seus dentes, de modo que ela se morderia ao tentar fechá-la. Iam obrigá-la a comer até vomitar, vomitaria sobre o prato e a fariam comer seu próprio vômito. Edmundo fechou os olhos, angustiado, inspirou lenta e profundamente, tentando não vomitar ele também enquanto escutava os gritos de terror da jovem:

– Não quero mais! Não quero mais! Não quero mais!

Edmundo se forçou a abrir os olhos. Escuridão. Então percebeu que tudo tinha sido um sonho. “Que sonho ridículo”, pensou. “Polícia Nutricional. Quem poderia pensar numa coisa dessas?”. Mesmo assim continuava suando, agitado. Parecera tão real. Especialmente aquele último grito.

– Não quero mais! Não quero mais!

De novo! Estava ouvindo! O terror arrepiou sua espinha. Mas não, não era sonho. Era sua filha Vanessa, de dois anos, que no cômodo ao lado gritava sonhando. Que estranho, será que tivemos o mesmo sonho? Não, claro que não, ela deve estar acordada. É isso, eu é que devo ter gritado dormindo, e ela está repetindo para chamar a atenção. Essa...! Realmente, essas crianças são umas espertinhas. O médico bem avisou, quando nos explicou como ensiná-la a dormir, que ela tentaria todos os truques para nos atrair ao seu quarto à noite. Mas eu não vou, claro que não. Ela precisa aprender a dormir sozinha, chega de fazer a gente de bobo.

Aliás, um dia desses vamos ter que falar com o médico sobre a comida. Come cada vez menos, e ainda por cima começou a fazer birra. Alguma coisa vamos ter de fazer com essa menina.


GONZÁLEZ, Carlos. Mi niño no me come. Consejos para prevenir y resolver el problema. Madri, Temas de Hoy.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Cinderela


Fitou o espelho e admirou por um instante seu porte de porcelana. A linha da cabeça, sempre.

O conhecido movimento para alcançar a fita da sapatilha, e de súbito uma trajetória ligeiramente inusual da ponta de gesso libera um estalido que rasga a sala. A mão que passava já à fita termina de soltá-la mecanicamente.

A bailarina observa o pé liberto e olha estupefata os cacos que a refletem. Como fizera aquilo?!

Abandonando a sapatilha fatídica, levanta-se e desce correndo as escadas, embrenha-se pela rua. Os cabelos parecem saber, e soltam-se dos grampos sempre inescapáveis.

Surpreendentemente ofegante, bailarina que é, desaba sobre um banco. A planta do pé descalço acaricia a grama que o pinica.

Ao rapaz que passa pede um cigarro. Gostaria de levar em troca uma sapatilha de ponta? Ele sorri, segura-a pela fita e guarda ali o meio maço de cigarros amassado, enquanto se afasta.

Só, ela olha a praça e sente com atenção o vento gelado que lhe varre as bochechas. É bom.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Minha Mãe que Disse


Nunca pensei neste espaço como um blog de maternidade. É um caderno de escritos compartilhados, porque escrever é se autoconstruir, e compartilhar deixa a gente menos esquizofrênica, eu acho.

Mas é bem verdade que esse tema anda muito aqui, e eis que o portal Minha Mãe que Disse viu meus escritos e me convidou para escrever por lá. Instigada pelas preocupações deuma amiga recém-mãe, escrevi alguma coisa sobre amamentação. Quem quiser dar uma olhada, vai lá: http://minhamaequedisse.com/2013/10/o-corpo-e-a-alma/.



O corpo e a alma

Sempre achei que amamentar seria esquisito para mim. Claro que aí entram as minhas loucuras mais particulares, mas acho que esse receio ou dificuldade em relação a se sentir confortável na amamentação não é só meu. Para falar disso, poderíamos começar uma reflexão sobre o quanto a amamentação está ausente, como prática social, do nosso imaginário, dos nossos referenciais. Onde estão as mulheres amamentando? Eu não me lembro de vê-las com muita frequência, nem na minha família, nem na rua, nem na novela... Mas de vez em quando penso nelas figurando em críticas ou piadas. Apesar do incentivo oficial ao aleitamento materno exclusivo e prolongado, na prática nós temos de enfrentar diversos constrangimentos e tabus para implementá-lo.

Essa reflexão me parece inteiramente pertinente, e sugere uma linha de militância pró-aleitamento com a qual simpatizo. Mas, levada ao limite, seria como dizer que, se não fossem os preconceitos e tabus em torno da amamentação – ou seja, certas limitações e constrangimentos externos –, os receios ou desconfortos a seu respeito não existiriam. E eu acho que não é bem assim. Tem alguma coisa aí que vem de buracos que ficam mais embaixo...

Bom, eu e minhas pequenas loucuras. Uma coisa que me preocupava era como eu ia processar a relação entre meu bebê e uma parte tão erotizada do meu corpo. Essa maluquice de a gente estabelecer uma cisão absoluta entre filhos e sexo. Além disso, achava que não ia me sentir bem amamentando em público. Quando uma amiga, recém-mãe, me perguntou por quê, respondi com a maior simplicidade do mundo: pelo mesmo motivo que eu não faço topless... (Claro que não vai aqui nenhuma crítica a essa prática, já é bom falar, eu apenas quis dizer que a nudez pública do peito não era algo confortável para mim...)

Mas eu fiquei grávida, minha filha nasceu, e eu descobri que esses sentimentos sobre o corpo simplesmente mudam. Bem, mudaram para mim. A libido vira energia e ternura para cuidar do bebê. O peito cheio – vazando! – transforma qualquer erotização na necessidade de fazer o leite fluir, a vida fluir, marcada pelo ritmo novo do dorme e acorda do bebê. Descobri então que a resposta um dia dada à minha amiga era um tanto absurda, porque o peito que faz topless não é o mesmo que amamenta.

Ainda assim, a vontade de preservar a privacidade do corpo pode permanecer. E para isso existem recursos convenientes, como sutiãs, blusas e capas de amamentação, fraldinhas sobre o peito. No começo eles me pareceram ótimos e foram úteis, mas aos poucos fui achando que respondiam mais a um suposto pudor alheio que ao meu, e acabavam me atrapalhando, então fui deixando de lado.

Há quem sugira, como resposta a essa preocupação com a privacidade do corpo, o recolhimento da mulher que amamenta. Pois amamentar é um momento íntimo e especial, a ser vivido no aconchego do ninho e longe dos olhares alheios. Ok, se assim a mulher desejar. Se não for um recolhimento penoso, uma solidão indesejada. Se for um recurso, e não um inconveniente. Para mim não serviu. Eu vou ao bar com meus amigos, bebê mamando.

Mas o que fui percebendo, e para mim foi uma grande descoberta, é que ficar à vontade com a condição de mulher que amamenta é um processo que se dá junto ao de construir nossa nova condição de mulher que é mãe. Ao contrário do que podem dar a entender as frases feitas e as propagandas de fralda ou de margarina, tornar-se mãe inclui um processo de reestruturação emocional e redefinição de nossa identidade nem sempre confortável. E nesse pacote está a relação com o corpo e a amamentação.

Quando usamos nosso primeiro sutiã ou nosso primeiro absorvente, eles podem incomodar. E parece que todo mundo está olhando. Com o tempo, aprendemos a escolher o sutiã mais adequado, elegemos nossa marca de absorvente, e vemos que ninguém está nem aí para a nossa puberdade. O absorvente pode até incomodar, mas no final das contas o difícil mesmo é sair da infância e construir essa nova pessoa que não é mais criança e ainda não sabe o que é.

O constrangimento ou o desconforto em amamentar, em público ou não, tem algo do desajeitamento de quem está aprendendo a ser alguma coisa mais do que já era, a lidar com um corpo novo e uma nova autoimagem. A se colocar no mundo mais uma vez, em um outro lugar. E se para isso você precisa de um quarto à meia luz, acenda o abajur. Se precisa cobrir o peito, acomode seu bebê sob um paninho acolhedor. Se precisa do seio livre e desimpedido, mande o pudor alheio às favas. Porque você está colocando duas pessoas novas no mundo, e merece toda a ajuda possível.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Pastichando



Domingo de pão

Era sempre igual, tanto o pão como o ritual.

Primeiro ela tirava a aliança e colocava em algum canto da cozinha. Não vá a massa entranhar os pequenos brilhantes da única joia. (Às vezes, depois de tudo, um ligeiro pânico de perdi a aliança. Estava sempre lá; onde mais estaria?)

Nunca podia ser feito com verdadeiro sossego, pois logo íamos espiar o processo, perguntando. Minha mãe bem que gostaria desse sossego. Ela gosta de se mover só e concentrada, livre, na cozinha. Mas nós queríamos meter as mãozinhas: era mais fácil nos dar o que fazer, e acabávamos invariavelmente untando a forma. A tarefa das crianças.

A receita não lembro. Se iam ovos, leite? Lembro da farinha espalhada pelo mármore. Acho que herdei dela essa expectativa de que toda casa tenha uma grande superfície livre, uma bancada, uma mesa enorme. Pouco importa o tamanho da família.

O pão era sempre moldado como um falso rocambole, enrolando-se a massa nela mesma. Deixa crescer enquanto a bolinha sobe. Era absolutamente fascinante: a pequena bolinha de massa, que podíamos ajudar a enrolar e colocar no copo com água, de repente subia, e então era hora do forno. Não havia explicações sobre a densidade do ar e da água, era pura mágica. A mãe dela usara a bolinha no copo por toda a vida, e ela também fazia assim. Funcionava.

Ainda demora? Já sabemos, pão sempre demora. Mas a entrada no forno acionava inexoravelmente a ansiedade do pão quase pronto. E ninguém precisava nos avisar que ficou pronto, pois o cheiro entrava por cada cômodo e transbordava para o quintal, mais eficiente que sirene de refeitório. Cheiro de pão quente.

Enfim a manteiga derretendo sobre a fatia fumegante, amornada apenas o mínimo necessário para nossos dedos. Dizem que pão quente faz mal. Para nós, era puro deleite.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Exercício de tradução



Ajudando a debulhar ervilhas

É quase sempre naquela hora vaga da manhã, em que o tempo já não tende a mais nada. Esquecida a louça e as migalhas do café da manhã, distante ainda o perfume quente do almoço, a cozinha fica tão calma, quase abstrata. Sobre a toalha impermeável, apenas uma folha de jornal, um punhado de vagens, uma tigela.

Nós nunca chegamos no início da tarefa. Atravessávamos a cozinha em direção ao jardim, para ver se o correio já tinha passado...

– Posso ajudar?

Claro. Podemos ajudar. Podemos sentar à mesa da cozinha e logo encontrar na tarefa aquele ritmo despreocupado, relaxante, que parece marcado por um metrônomo interno. É fácil debulhar ervilhas. Uma pressão do polegar na fenda da vagem e ela se abre, tenra, entregue. Algumas, menos maduras, são mais reticentes – mas basta um corte com a unha do indicador para rompê-las e sentir a umidade e a carne densa, sob o falso veludo. Em seguida, deslizamos as bolinhas com um dedo. A última é tão pequenininha. Às vezes dá vontade de morder. Não é gostoso, ela é meio amarga, mas fresca como a cozinha das onze horas, cozinha da água fria, dos legumes descascados – ao lado, na pia, cenouras nuas brilham num pano de prato, terminando de secar.

Então conversamos aos bocadinhos, e também a música das palavras parece vir de dentro, tranquila, familiar. De vez em quando levantamos a cabeça para olhar para o outro, no fim de uma frase; mas o outro deve manter a cabeça baixa – é a regra. Falamos de trabalho, de projetos, de cansaço – não de psicologia. Debulhar ervilhas não foi feito para explicar, mas para seguir o fluxo, em leve contratempo. Poderia tudo levar cinco minutos, mas é bom prolongar, desacelerar a manhã, vagem por vagem, mangas arregaçadas. Passamos as mãos pelos grãos debulhados que enchem a tigela. É macio; todas essas curvas contíguas formando como que um lago verde tenro, e ficamos espantados de não sair com as mãos molhadas. Um longo silêncio de claro bem-estar, e então:

– Só falta buscar o pão.


DELERM, Philippe. La première gorgée de bière et autres plaisirs minuscules. Paris: Gallimard, 1997.


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Tenho adorado as aulas de prática de tradução. As pessoas têm ideias tão boas, e o compartilhamento vai gerando insights. (Devíamos fazer grupos de prática de várias coisas, com múltiplos insights para a vida...)

Quanto ao texto, que difícil chegar à leveza do original... A naturalidade do ato transferida à palavra, elegante.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Voltar


Eu sinto saudade de casa.

Gosto do seu cheiro e da densidade do ar, que nunca são iguais em qualquer outra parte do mundo.

Gosto do meu chuveiro, quente e farto, e de saber já de cor em que ponto a torneira deve ficar para a água sair temperada como eu gosto. Sem testes.

Gosto da minha cama, especialmente agora que arranjamos um colchão grande, onde cabem todos os meus braços, pernas e uma eventual criança de um ano e meio metendo o cotovelinho nas minhas costelas.

Gosto da luz da minha casa. O sol não penetra meu apartamento como eu gostaria. Mas tenho lâmpadas aconchegantes que aveludam as paredes e arredondam os móveis. (Porque as pessoas enlouqueceram e colocam lâmpadas eletrônicas brancas em todo lugar, deixando tudo com cara de hospital ou açougue.)

Gosto da minha comida. Dos meus legumes bem temperados, que não são acompanhamento nem dieta, e que minha filha se diverte pegando com os dedinhos de pinça.

Gosto do cheiro do meu café, de apertar o botão da cafeteira e esperar o barulhinho da água borbulhando e dizendo que o dia começou. E de tomá-lo no balcão da cozinha, dividindo com o marido uma fatia de pão quente de torradeira e manteiga feita em casa.

Gosto de forrar o tapete da sala com edredons e almofadas, depois do jantar, e ficar brincando na meia-luz com minha filha, até que ela se aconchegue a uma almofadinha e durma. É, minha filha de um ano e meio adormece quase todas as noites no chão da sala, com a TV ligada. Shame on me...

Enfim posso sentir meu corpo relaxar e minha cabeça voltar ao lugar. E quem sabe mandamos essa gripe de férias pro inferno.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Amamentação prolongada e língua comprida


Família viajando de carro pelo interior do Brasil. Posto de gasolina indo do Maranhão para o Piauí, sol de rachar o coco, poeira seca suspensa no ar. Enquanto aguardo o PF vir da cozinha, Teresa que não é boba nem nada quer mamar. Sento estrategicamente ao lado da garrafa d’água suando, que eu também não sou boba nem nada...

Chega um casal de moto. A mulher passa por mim, e lança:
– Que neném grande, né?
– É... – e com um sorrisinho amarelo fico me perguntando “grande” com base em quê...
– E mama, né?
– Ahã... – e mais um sorrisinho amarelo pensativo: “Ah, entendi com base em quê...”.

A mulher entra pra lá. Passa voltando pra moto:
– Ela é grande, né, tem quantos aninhos?
– Um e meio.
– E ainda mama?! A minha neném eu tirei do peito com um aninho!
– É mesmo, sua bruxa? Coitada da sua filha!

Mentirinha... Só mais um sorriso amarelo, e outro ahã. Eu nem penso assim, de verdade. Cada mulher sabe de si, amamentar é um ato íntimo: que bom se cada uma puder decidir de maneira livre e consciente sobre sua própria vida. Mas que dá vontade de lançar uma dessas de vez em quando pra gente abelhuda, ah dá!


quarta-feira, 26 de junho de 2013

Deixa chorar


Caro Baudelaire, não são apenas as cidades que mudam mais rápido que o coração de um mortal: os filhos também... Obsolescência programada: suas habilidades, capacidades, demandas, tudo muda tão rapidamente, que nosso equipamento precisa de upgrade todo mês, toda semana, todo dia! Eu não dou conta: fico pra trás. Imensurável o meu espanto na primeira vez que Teresa levantou a tampa do lixo do banheiro para eu colocar a fralda suja dentro - pode isso?! Então começo a entender melhor a ideia de que as mães facilmente podem se tornar superprotetoras e tolher seus filhos: é que seus avanços nos surpreendem, e a ficha às vezes demora a cair.

Esses tempos andou me caindo a ficha de que Teresa já pode esperar. Já consegue lidar com a impossibilidade de ter o que quer, na hora em que quer. Já pode ajudar. Já pode atender alguns pedidos, em vez de apenas pedir. Bonito... Mas às vezes desanda: não quer esperar, quer agora e já, e aí irrompe o choro gritado, de propósito. Calculado, diriam os partidários do pensamento de que as crianças são serezinhos manipuladores.

Nessas, comecei a matutar sobre a questão do choro.

Nas últimas semanas apareceu um outro choro, relativamente inédito: o de que nada está bom. Andou doentinha, coitada, e tinha uns momentos de chorar de qualquer jeito, por qualquer coisa, irritada, chorar no colo, chorar no peito. Minha filha não teve cólicas e esses episódios de choro intratável foram sempre raríssimos aqui em casa.

Quando comecei a enveredar pelo assunto bebês e criação de filhos, descobri os métodos de treinamento de choro controlado para "ensinar o bebê a dormir sozinho": deixe o bebê chorando, que uma hora ele para, senão fica mimado. Nunca me agradei da coisa, e então descobri os detratores do método, reunidos sob o lema "Não deixe seu bebê chorando". Claro que não, oras... E assim a expressão "deixar chorar" cristalizou-se em mim unicamente com o significado de "abandonar ao próprio sofrimento".

Mas eis que por esses dias me dei conta de que ela também pode significar "permitir que chore". E entendi que precisamos permitir a nossos filhos que chorem. Porque chorar também é preciso. E legítimo. Porque a banana não amadurece quando temos fome e isso nos frustra contra o universo. Porque a mamãe precisa terminar o jantar antes de amamentar e isso revela os limites da relação simbiótica. Porque a garganta dói e o corpo amolece e tudo então é horrível. E chorar é nosso primeiro recurso para lidar com a frustração e a dor.

Nesta sociedade em que precisamos estar sempre bonitos e felizes, transpirando sucesso, nos é vedado chorar. Desde cedo: "engole o choro". E se desde cedo engolimos o choro, ou trapaceamos com ele, calando-o com um brinquedo ou um chocolate, como vamos sofisticar nossos recursos emocionais para lidar com a frustração e a dor?

Portanto, a partir de agora, deixo chorar. Se preciso for, choramos juntas.

domingo, 23 de junho de 2013

Perfeição


Hoje, no banho, Teresa resolveu ficar em pé dentro do balde enquanto ele enchia. Quando sentou, um montão de água transbordou e foi pelo ralo, e ela se acomodou feliz, submergindo até os ombros em água morna. E eu, Arquimedes que me perdoe, tive um momento eureka: a água de um banho de imersão é a realização do perfeito! A água necessária é exatamente a que cabe, nem mais nem menos. A água suficiente é exatamente a que cabe, nem mais nem menos.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Estatuto do nascituro


Apesar de eu desconfiar enormemente da ideia de progresso, de mudanças progressistas, como se pudesse haver na sociedade evoluções lineares e isentas da contradição, não consigo deixar de pensar nesse estatuto como uma aberração e um "passo atrás", um retrocesso.

Em vez de seguirmos em direção à descriminalização do aborto, do aborto como escolha da mulher – uma escolha pesada e cujo ônus ela própria carregará por toda a vida –, estamos a um passo de criminalizar mulheres estupradas que se recusem a perpetuar a violência sofrida gerando em seu próprio corpo o filho de seu agressor; mulheres doentes que façam a excruciante escolha de salvar sua vida em detrimento da do feto que carregam em seu ventre; mulheres que passaram pela já dolorosíssima experiência de sofrer um aborto espontâneo.

Este é um país laico. Nós, que de maneira geral vivemos sob os valores e as circunstâncias do mundo ocidental contemporâneo, costumamos ter muito pouca dificuldade em olhar para as sociedades muçulmanas teocráticas, por exemplo, e dizer “Que absurdo!”, “Que atraso!” Muito bem, se é ponto pacífico que não queremos uma sociedade teocrática, então nossas crenças pessoais de âmbito religioso não interessam à discussão. Não cabem. Simples assim. Cada um leva a sua vida particular de acordo com suas crenças particulares. Elas não entram na arena pública.

Mas talvez o mais insuportável para mim seja a facilidade com que discussões delicadas como essa descambam para o moralismo. Do mesmo modo como a moça bonita de saia curta não é levada a sério quando denuncia um estupro, as vozes guiadas pela lógica da culpa e do pecado logo se levantam para marcar com o mais pesado estigma a mulher que opta pelo aborto: "Em caso de estupro posso até pensar no assunto, mas por simples escolha não – não foi bom fazer? agora cria!"...

E assim, do mesmo modo como exigimos das crianças uma retidão moral e de comportamento que nós adultos estamos longe de exibir, colocamos sobre os ombros das mulheres toda a punição pelo sexo pecado que ainda habita nossas mentes e corpos. Porque na sociedade machista e patriarcal em que vivemos, o filho desejado, sobretudo o varão, é orgulho do pai; mas o filho não planejado, não desejado – não tenhamos a menor dúvida! – é problema da mãe.


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Segurança


Chegamos eu e ela para a adaptação. Ela me dá a mão para descer os degraus e vamos pacientemente, um por um, juntas. Nos tropeços, me olha com cumplicidade e achando divertido. Já sabe fazer caras e bocas, é possível? Lá embaixo, não larga minha mão e sai andando, como de costume: segura com uma firmeza inédita, para e olha em volta. Já tinha ido comigo e o pai no dia da visita, mas se comporta de um modo novo. A monitora se aproxima e tenta pegar sua mão, ela não deixa. Vamos andando juntas. Ainda segurando minha mão, aceita também a da monitora. A escola é linda, e nos dirigimos ao parque de areia pelos caminhos alegrados pelo sol e as plantas. A coordenadora se aproxima para dar as boas-vindas. Então ela solta minha mão, segue com a monitora para ver os brinquedos no parque. E depois as galinhas, e as árvores, e já não sei mais o quê, porque já não as vejo. Saco meu livrinho e fico em um banco, na sombra. É um lindo dia de sol.

Quando voltam, vamos para sua sala, onde ela encontra uma almofadinha igual à que uso de apoio para amamentá-la em casa. Vem me entregar a almofada e uma boneca, e logo se entretém com a tomada. E com a varanda. E com as outras crianças que chegam. E a monitora a convida a se reunir no parque com os coleguinhas que começam a se concentrar por ali. Olho minha menina pela janela. Hoje está de roupa de criança, não de bebê. Sai toda firme e tranquila com sua jaqueta de moletom e as botininhas novas dadas pelos avós. Os olhos marejam vendo-a de costas, afastando-se de mim a passos seguros, em direção a tanta coisa nova.

Me lembro de uma frase que adoro, do filme Encontrando Forrester. Ao vencer um concurso literário com um texto nascido de um exercício de redação proposto pelo escritor recluso que se tornara seu mentor, um rapaz é acusado de plágio. Em sua defesa, o escritor surge para dizer que não, não há plágio: ele apenas cedeu suas palavras para que o rapaz pudesse encontrar as dele.

Meu amor, encontre suas palavras, estarei esperando para ouvi-las.

domingo, 2 de junho de 2013

Sentir / sair


De vez em quando tenho umas vontades de mudar tudo, assumir uma vida inteiramente diferente. Aprender inglês em São Francisco. Pintar o cabelo de azul. Estudar biologia. Arranjar um emprego nove-às-seis. Mudar os amigos. Morar dois anos em Buenos Aires. Trocar o apartamento por uma casa no mato. A verdade é que na maioria das vezes acabo apenas cortando o cabelo e mudando a cor das almofadas...

Sempre vi essas vontades como problema de uma personalidade volúvel – sou de fase. Meu pai cedo entendeu isso em mim, que a grande dor da escolha não é o que a gente pega, mas aquilo que a gente deixa, então vou querendo um pouquinho de tudo aqui e ali. E me dizia que pedra que rola não cria limo. Ele tem uns ditados engraçadíssimos, meu pai, mas, francamente, essa metáfora não convence ninguém: quem quer criar limo?!

No exercício de tentar ser mais generosa comigo mesma, há algum tempo resolvi aceitar que de vez em quando preciso da mudança. Decidi enxergar a coisa pelo prisma do fato, não do defeito. Preciso, me traz vitalidade. Tem gente que precisa saber que o sofá estará sempre ali esperando por ela. Eu preciso saber que posso mudar o sofá se me der na telha, senão me sufoco com aquele sofá sempre ali, sempre igual. E afinal, o que há de errado se somente hoje eu fui perceber que o sofá fica muito melhor do outro lado da sala?...

A capacidade de se desfazer do que não serve mais me parece muito sábia. Integridade, estabilidade, equilíbrio, tudo bonito, mas passou do ponto vira estagnação, evolui para o sectarismo. O maduro não floresce mais. Claro que é gostoso ir ficando por ali onde tudo dá certo, mas a vida costuma providenciar umas desacomodações pra gente se sacudir de vez em quando. Coisa boa, que desconcerta.

Descobri que ter um filho é isto: uma série de grandes e pequenas desacomodações. Um bebê em casa dá uma nova perspectiva sobre a mudança: ela acontece todo dia, na sua frente e dentro de você. Coisa impressionante. Difícil de acompanhar. Daí que ando obcecada com as ideias de tempo e movimento. Na verdade, é bem óbvio e piegas: tudo está no movimento, e cada coisa tem seu tempo; o drama seria bem menor se nos deixássemos – e nos deixassem – à vontade para acompanhar o movimento, viver o tempo de cada coisa, de cada um. Um desafio, do superego à superestrutura...

O tempo de cada um. Quando Teresa nasceu, eu tinha ódio das piadinhas e comentários sobre separação, essa coisa das pessoas dizerem que você precisa ser menos agarrada com seu filho. Aliás, quem não sabia, fique sabendo: não é engraçado nem fofinho dizer à mãe de um recém-nascido “Que bebê lindo, vou pegar pra mim!” Não vai nããão!, ruge a leoa cá dentro. Eu tinha uma genuína vontade de ficar quase o tempo todo com minha filha, no meu campo de visão, no meu colo, dormir com ela, pode botar lá dentro de novo, por favor?

Aos poucos, a vontade de separação aparece. Se não houvesse especialistas para definir quando ela deve aparecer, se não fossem tantas as imposições externas, padronizadas, burocráticas e preconceituosas sobre o que e quando devemos sentir, talvez desconfiássemos menos de nosso desejo de proximidade e de nossa vontade de separação, talvez fosse mais fácil acreditar na intuição e não deslegitimar o que sentimos e queremos.

Assim, um belo dia me dei conta de que precisava reaver meu tempo sozinha. Para trabalhar, que é o mais premente, mas para tantas outras coisas e também para coisa alguma. Fiquei aflita e, confesso, um pouco decepcionada comigo mesma quando percebi que mandaria minha filha para a escola bem mais cedo do que eu imaginava. Cheia de culpa. Não faltam especialistas e enxeridos para dizer que seu filho vai ser uma pessoa muito mais interessante quanto mais cedo (cedo mesmo) sair da barra da sua saia. Nem para dizer exatamente o oposto: se a criança for para a escola antes dos quatro anos o cérebro dela vai se encher de cortisol e ela será irremediavelmente infeliz, para sempre. Suspiro...

Uma solução de transição foi contratar uma pessoa para passar algumas horas com minha filha, em casa mesmo, brincar, dar atenção a ela, para que eu pudesse dar atenção a outras coisas. E isso permitiu que aos poucos eu fosse me dando conta das minhas necessidades e limites. Comecei a observar a vida alinhavada numa sucessão de movimentos de aproximação e afastamento, contração e expulsão, fusão e separação. Volto à história das mudanças e do respeito aos tempos íntimos. A vontade de mudar como uma reação ao mergulho naquilo que já deu o que tinha pra dar. Creio que minha constituição como mãe e pessoa precisava passar pelo momento da mistura com minha filha, e mesmo sem saber fui criando situações para ter o tempo necessário a fim de que a separação fosse se colocando como uma necessidade íntima e legítima, não como uma imposição do mundo para comigo, ou negligência de minha parte para com minha filha.

Não sei se escola é o melhor espaço de convivência extrafamiliar para uma criança pequena. Em uma sociedade na qual "produzir" ganha um significado quase puramente econômico, a escola infantil é, entre outras coisas, o local onde a população "produtiva" deixa a população "improdutiva" até que esta possa reunir-se àquela... Impossível não enxergar na escola uma certa cooptação da mais tenra infância pela lógica do trabalho e do poder, e é um desafio encontrar um lugar um pouco mais afastado dessa concepção. Mas ela é o espaço que está disponível.

Esses dias ouvi esta frase, não me lembro onde, parece que é um ditado africano: "É preciso toda uma aldeia para educar uma criança". Isso me pareceu tão bonito, por várias razões, mas neste momento o que bateu em mim foi "Ok, lá em casa não tem aldeia nenhuma, só tem eu..." Então... escola. No tempo certo, que não é o da licença-maternidade, da LDB, do pediatra ou da vizinha. É o tempo em que me sinto capaz de viver essa relação, de incorporar essa nova experiência ao universo complexo da relação que nos envolve a todos, mãe, filha, marido, família. Lá vamos.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Porque é preciso rir do nosso próprio mau humor...


Recebo no sábado o e-mail de uma amiga: "Lembrei de você ouvindo essa música". Ah, que fofa! Clico no linkhttp://www.youtube.com/watch?v=RkzwNOTkGOs.
Conheço a música, inclusive gosto, mas confesso que nunca tinha prestado atenção na letra. Então presto.
...
Nossa, mas caiu como uma luva!
Gargalhadas, claro! Porque, afinal, quando você anda uma mala precisa pelo menos saber rir de si mesma. Senão fica uma mala, oras!

Então dá licença, que reclamar da vida também é poesia.


Nuvem negra
(Djavan)

Não adianta me ver sorrir
Espelho meu
Meu riso é seu
Eu estou ilhada
Hoje não ligo a TV
Nem mesmo pra ver o Jô
Não vou sair
Se ligarem não estou
À manhã que vem
Nem bom-dia eu vou dar
Se chegar alguém
A me pedir um favor
Eu não sei
Tá difícil ser eu
Sem reclamar de tudo
Passa nuvem negra
Larga o dia
E vê se leva o mal
Que me arrasou
Pra que não faça sofrer mais ninguém
Esse amor que é raro
E é preciso
Pra nos levantar
Me derrubou
Não sabe parar de crescer
E doer

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Claro escuro


Quando eu era criança, achava muito chique ter nome de música de Chico Buarque: eu estava fadada a ser inteligente, claro! A história é que meus pais estavam se aprontando para sair, minha mãe grávida, ouvindo o disco, e decidiram: se for menina, vai chamar Carolina; aí chegou meu futuro padrinho e lançou: estava pensando que se for menina podia chamar Carolina. Vixe: inteligente e conectada com o universo!

Mas minha mãe também contava que queria Januária. E eu achava que tinha me livrado de uma boa - Januária! De onde ela tinha tirado isso?! Depois fui descobrir que era outra moça de Chico, e comecei a suspeitar que uma bem melhor, na verdade: em vez de ficar na janela com seus olhos tristes vendo a vida passar, ela se penteava na janela, atraindo e enfeitiçando todo mundo com seus encantos - até o sol e o mar! Hoje acho que seria bem charmoso ser Janu... Mas o fato é que sempre me senti meio Carolina mesmo: olhos tristes, e um agudo sentido de que a vida passa, desde criança. Decididamente, eu vejo o copo meio vazio. Sempre quis ser mais ensolarada. Melancolia congênita?

Mas agora andei pensando que Januária também não sai da janela. Então qual a graça? Carolina admira a vida, e a vida admira Januária. Nenhuma delas vive.

Eu gosto mesmo das mulheres de Nancy Myers, rsss... É, nada de cinema de arte, na verdade não sou tão inteligente como previam os astros: a-do-ro Alguém tem que ceder e Simplesmente complicado. Aquelas mulheres lindas do jeito certo, quase aos sessenta anos, donas de suas vidas, em suas casas deslumbrantes - ah, aquelas casas! Claro, existe a insegurança por não ter mais a aparência da juventude, e os casamentos se desfizeram, e os filhos cresceram, e elas estão sós em casa. Não, na verdade, não. Porque elas têm projetos, veem pessoas, produzem suas obras - sejam histórias ou croissants. Mas principalmente porque nada terminou, a vida está em curso. E por isso há conflitos, inseguranças, dilemas. E elas saem melhores do que entraram. Não porque o sofrimento seja formador. Odeio essa história do sofrimento formador. Mas porque o fluxo da vida faz com que olhem para si mesmas, e se descubram, e se façam. Adoro quando o terapeuta olha para Jane e diz: "Vá em frente, isso não pode mais te machucar". Bom, talvez possa, mas ela já conhece o caminho da superação, sabe que ele é possível.

*****

Ah, então este é um texto otimista? Sei não... No final das contas, ainda não aprendi a ver o meu copo cheio...

terça-feira, 16 de abril de 2013

maternagem


adoro pentear seus cabelos
não porque eles devam ser penteados, ou porque ela precise que eu os penteie
é que quando os penteio alguma coisa em mim se organiza
e eu existo um pouco mais
como quem pinta um quadro
ou faz um pão

sexta-feira, 29 de março de 2013

Breve contribuição à puericultura de boteco


Criança não faz o peito da mãe de chupeta. Não sabemos se primeiro veio o ovo ou a galinha, mas certamente o peito veio primeiro que a chupeta. Portanto é o contrário: adultos dão chupeta para a criança fazer de peito. E tudo bem: cada um sabe das suas disponibilidades, possibilidades e limites - deixemos também às mães essa prerrogativa.


Criança chupar chupeta não é feio. Nem o dedo. Nem o peito. Adulto fuma, bebe, fala mal dos outros, faz palavra cruzada, corre, medita e tantas outras coisas para "desestressar". Deixa o bebê dar a chupadinha dele, oras! Em algum momento ele acabará trocando esse hábito por um dos tantos alívios e refrigérios morais e imorais legados pela raça humana.


"Fulano é uma pessoa muito limitada" - esta frase parece um elogio? Então por que a coisa mais fundamental a respeito da educação infantil seria dar "limites" às crianças?...


Criança fica manhosa perto da mãe. Queria que fosse perto do chefe?!


Um bebê que dorme a noite toda é uma bênção para a mãe. Mas a mãe não ter insônia é uma alegria que não fica muito atrás...

domingo, 17 de março de 2013

Casa tomada


Desde quinta-feira fui tomada por um acachapante mau-humor e uma intransigente necessidade de introspecção. De ficar quieta e só. (Numa semana cuja programação incluía três festas de aniversário de pessoas muito queridas e uma visita aos sogros... As festas ficaram impossíveis). Como se eu precisasse de uma extrema concentração, de me apertar toda, muito, até conseguir botar pra fora o que precisa sair, enxergar o que está tão dentro de mim.

Curioso como me vem precisamente essa imagem, que remete de maneira tão óbvia ao parto. Não o meu, que as circunstâncias fizeram com que fosse uma cesárea... Mas o que li, ouvi e fantasiei; talvez o parto arquétipo.

Curiosa outra coisa, também. É clichê afirmar que ter um filho muda a sua vida e que a experiência, embora linda e gratificante, traz dificuldades. E elas são facilmente enumeradas por qualquer conhecido ou desconhecido (e como desconhecidos com filhos interagem!!): noites sem sono, troca de fraldas frequente e nas horas e locais mais inconvenientes, mudanças em seus horários, necessidade de abrir mão de certas diversões e situações sociais, conflitos com os filhos (birra, manha, a famosa falta de “limites”...), mudanças na vida sexual, dificuldade de conciliar trabalho e convivência familiar, falta de tempo, de ajuda, de dinheiro, e tantos vários etcéteras... Mas ninguém fala do ponto central (ou era eu que não estava prestando atenção?): a experiência da maternidade acarreta uma das mais poderosas reestruturações emocionais da nossa vida. Você achava que aquela identidade tão arduamente construída desde a adolescência até ali seus vinte e tantos estava enfim confortavelmente instalada na sua vida? Tenha um filho e comece tudo outra vez! Bom, pelo menos tem sido assim comigo...

Então é isso: a gente achava que era difícil parir o filho, mas o que dá trabalho mesmo é parir a mãe... Não propriamente a mãe, mas essa mulher nova que inclui a mãe, e no entanto não coincide com ela. Não coincide com a mãe que somos, porque somos algo mais que mãe. Nem muito menos coincide com a mãe abstrata – da mais pura Gaia até a executiva que orgulhosamente equilibra terninho e mamadeira –, esse fantasma que com a maior desfaçatez sussurra nossa patente imperfeição em nossos vulneráveis(?) ouvidos.

Nesse último ano, tão intenso, ainda não tinha experimentado uma necessidade de recolhimento tão visceral. As últimas semanas têm sido particularmente exaustivas: parece que cada ajuste implementado no cotidiano se torna cada vez mais rapidamente obsoleto ou ineficaz – tudo pesa, do preparo do almoço ao prazo do mestrado. Preciso ficar quieta.

O luminoso: se deixar dominar pelo recolhimento, agarrá-lo com a força da vida e obrigá-lo a cuspir o novo, o potente. Quem?


sábado, 2 de março de 2013

Descompasso


A vida é um descompasso. Ou vai ver que sou eu... Difícil pensar num deleite maior que a sensação pungente de que simplesmente estamos onde queríamos estar. Para mim ela remete à imagem – um clichê sem tamanho... – de uma espreguiçadeira na praia, uma caipirinha na mão e a pele morna de sol. A memória dessa sensação rara e fugaz me faz pensar em alguma coisa como estar flutuando... Imagino ser natural que isso só aconteça de maneira avassaladora umas poucas vezes na vida, e que na maioria do tempo essa satisfação seria mais como uma tranquilidade sorridente. Mas minha impressão é que passo uma parte grande demais da minha vida cumprindo tabela onde estou e querendo avançar pra outro canto...

No momento, o grande onde-estou-e-não-queria-ficar é meu mestrado, que tem sido fonte de desmesuradas angústias... Uma das coisas mais pertinentes que já fiz na vida foi cursar minha segunda faculdade. Foi um momento muito intenso de aprendizado, de contato com pessoas tão interessantes que me ensinaram a entender de maneiras novas e esclarecedoras o mundo e a mim mesma, de encontrar um lugar para mim. Eu estava exatamente onde queria. Por algum tempo... Hoje penso que entrar no mestrado foi, entre outras coisas, uma tentativa de estender esse momento.

Mas estava claro que ele tinha passado, os planos já eram outros: eu tinha um trabalho novo que me interessava, começava a pensar em ter filhos, aprender a plantar coisinhas na varanda (quem conhece minha varanda está rolando de rir agora) e cozinhar direito... O resultado é que o mestrado se arrasta, pois me faltam tempo e energia e sobretudo ímpeto para concluí-lo; meu trabalho segue precário; e minha casa e minha filha acabam negligenciadas por uma mulher que anda se sentindo tão atropelada por tudo que faz de cada coisa um fardo...

Colocar a vida em fase – esse é o desafio. “Sê inteiro”. Aproximar a ação e a vontade.

Mas a beleza da vida também está no irrequieto, não? Outro dia, na minha aula de yoga, minha filha levava seus tombinhos enquanto tentava aprender coisas monumentais como andar, subir no sofá, desligar o aparelho de som... Rindo, a professora ponderou: “É que a vontade vem primeiro. Ela vem antes de se desenvolverem os recursos, ela é o impulso.” A gente começa a andar meio torto até aprender, e nem bem está andando já quer correr...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Acolhimento


Hoje foi dia de enxaqueca. Começou na madrugada de domingo para segunda, e ontem durou o dia todo, a noite toda... Dor oscilando no moderado-intenso. Deu pra fazer um omelete no almoço, trabalhar um pouco à tarde. Mas no jantar, pão e coca-cola. Na madrugada, o desespero do “vou pro hospital” aplacado por um banho imenso sentada no banheiro. Mas hoje acordo pior ainda, com a filha querendo brincar e a mãe saindo para a rodoviária de volta de uma visita no fim de semana. Marido abduzido pelo trabalho. O já muitíssimo conhecido desamparo do dia da enxaqueca, revestido de um novo desespero quando sua bebê não entende nada e nada pode fazer além de precisar dos seus cuidados... Antes até dava para meter a menina no sling, entrar no táxi em direção ao hospital, e ficar com ela no colo e até amamentar enquanto o soro pinga e o sono morno e narcoléptico chega (claro que depois de responder a quatro diferentes funcionários que não, você não tem com quem deixar a criança...) – mas agora ela quer engatinhar pelo hospital e arrancar o acesso do meu braço, aquele penduricalho bizarro que não é parte de sua mãe...

Cinco minutos de choro e andar em círculos; ódio do trabalho do marido e da viagem da mãe. Decido: vou para o hospital. Tento a meio-que-babá, sempre atenciosa e que responde tão prontamente, e nada... Apelo no telefone com o marido consternado. Vamos aos amigos. Karen, uma amiga relativamente recente e sempre incrivelmente carinhosa e disponível para comigo e minha filha, diz simplesmente, assim de cara, que chega em dez minutos. E chega. E mantém o bom-humor quando temos de instalar a cadeirinha de bebê no carro, e quando mudamos de caminho por causa do congestionamento, e assim acabamos dando num hospital ao qual ela nem sabe chegar, e quase que nem eu... Tranquila me explica que precisa levar o marido ao aeroporto daí a um tempo e sugere levar Teresa consigo caso eu ainda esteja lá – e certamente estarei... Caramba, mas você tem coragem? E se ela chorar, faz o quê? Não se desespera? “Claro que não! Você não precisa se cuidar? Então se ela chorar eu cuido dela, oras.” E cuidou, e eu me cuidei, e quando cheguei de táxi a sua casa minha cabeça já não parecia explodir, e Teresa esfregava um pedaço de morango no sofá de Karen, que achava graça. Mamou em breve, mas não imediatamente. Tão crescida...

A vida tem sido intensa por aqui. A solidão e o sentimento de que nada retoma seu lugar. Nunca me haviam explicado que após o nascimento de um filho a gente tem vontade de trocar todas as roupas e arrumar a casa inteira. Diz a terapeuta que a solidão do pós-parto é a solidão de crescer, que tornar-se adulto é algo que só se faz sozinho. Tão esclarecedora já a primeira sessão... Mas sozinho não é o mesmo que isolado e sem recursos. Nada retoma seu lugar, porque nem os lugares são os mesmos, nem as coisas nos lugares. Um homem não entra duas vezes no mesmo rio, e o cara já disse isso faz tempo... E a gente vai procurando o jeito de fazer a vida concreta, de enxergar que “o que tem pra hoje” é tudo que se tem, e vale muito.

As coisas têm sido intensas aqui dentro. E volta e meia transbordam na forma de insônia. Como eu posso – após um dia tomando analgésicos, narcóticos e antieméticos na veia, tendo dado várias pescadas enquanto esperava o marido me buscar na casa da amiga, e mal sustentando a conversa durante o jantar –, como eu posso estar rolando na cama às três da madrugada? Amanhã vai ser dose... A insônia é a vida cheia demais, emaranhada demais, que não acomoda na cama. Precisa aparar, desembaraçar, entender o que fica e o que sai.

Então, resolvi escrever. Alguém vai ler? Não sei. Vem depois. Quem escreve sabe que, para quem escreve, o essencial é escrever.