sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

bendito é o ventre


vi isto ontem. não é ser gorda ou magra, o problema é a silhueta. a barriga proeminente. pareço grávida.

tem um bebê na sua barriga?

vergonha.

aprendi a vergonha do meu ventre de mulher.

escrevo para desaprender.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Gente

 
Eu não tenho muito timing. E ainda não fui ver outro filme. E ainda tem gente falando de Bacurau ao meu redor. “Bacurau” que pra mim era um peixe mas descobri que é uma ave.

Quando eu disse do meu choque pois sou a motoqueira, as pessoas riram simpáticas e complacentes. Me conforta. Veja bem, eu sei que não sou a burguesia nacional que pensa que é branca. Mas eu também não sei bem onde cavar. Aquele filme é sobre a força que tem quem sabe onde cavar. E sobre a tragédia de quem acha que não precisa.

Entre outras coisas, pois não é cartilha. Eu acho. Mas a gente quer cartilha. Porque a gente segue a cartilha. Resistência popular! A gente denuncia a cartilha. Incitação à guerra civil! Mas não cava.

Oras.

A banalidade do massacre. Não é 1960. Passamos historicamente do exército de reserva para a população sobrante. Não é exploração, não é controle da rebelião social, é massa desumanizada a ser gerida ou exterminada, o que der. Os livros de geografia falam que as cidades asiáticas são formigueiros. Foto do alto. As cidades asiáticas. Manhattan não.

E aquela abertura cafona. Fica a voz da Gal Costa me perturbando até hoje e eu penso “Tão lindo aquilo lá”. Os pontos luminosos lembram minhas viagens de infância quando eu via as luzes das cidades ao longe. As luzes de um vilarejo transmutadas nas luzes do mundo inteiro. É uma brincadeira com escalas linda.

Borrar a distinção das escalas. Evocar a simultaneidade como aspecto essencial do espaço-tempo do capital. Não tem cidade pequena, média e grande. Não tem país subdesenvolvido, em desenvolvimento e desenvolvido. Não tem etapa rumo ao equilíbrio. O que tem é uma lógica, uma, que produz o vilarejo e o mundo inteiro. Uma lógica que sustenta e é sustentada pela existência simultânea da civilização e da barbárie.

População sobrante não é gente. Quem nasce em Bacurau é o quê?
 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Contar


Faz dois anos que Isabel nasceu. Faz dois anos que eu queria contar essa experiência inadjetivável que foi parir uma criança. Contar é uma forma de entender.

Logo depois do parto eu ficava constantemente pensando "Por que eu fiz isso?"

E na minha avó, minha avó, minha avó.

Minha avó passou quinze, vinte anos grávida. Grávida e parindo. Grávida e parindo. Sem escolha. Grávida e parindo.

Minha mãe não pariu. Minhas tias não pariram. Como poderiam?

Eu pude.

Mas ainda não sei contar.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Psicodelia brasileira


Acho que a última vez que eu tinha ido ao cinema ver um filme que não era voltado ao público infantil foi em 2012, quando minha primeira filha ainda era bebê. On the road. É isso: a vida engole a gente.

Por alguma razão, decidi dar um jeito de ver Bacurau no cinema. Procurei minuciosamente o ponto da minha agenda onde dava pra encaixar, abri o guia de cinema e selecionei o local e horário que possibilitavam a logística. Cinema de shopping center, um chique.

Só quando cheguei lá me dei conta de que era na sala VIP do complexo. Não desisti porque, veja bem, desde 2012.

Assisti Bacurau instalada em uma macia poltrona reclinável da sala VIP de um shopping chique no meio dos Jardins, ao lado unicamente de um casal: um senhor e uma senhora devidamente reclinados ao longo de todo o filme.

Terminada a sessão, saí da sala atordoada. Mesmo. Atônita, com a respiração descontrolada, fiquei dando voltas pelo shopping e olhando aquelas pessoas que não podiam ser reais. Nem eu. Eu andava, chorava e ria ao mesmo tempo, em meio àquelas vitrines absurdas fluidas brilhantes e aquelas pessoas improváveis sorridentes muito luminosas.

Escrevendo mensagens no celular para duas amigas, porque eu precisava de alguma ancoragem no real.

Uma delas, a pessoa mais gentil que eu conheço, disse que fiquei assim porque tenho uma grande capacidade ser impactada pela arte.

Mas não era isso.

É que eu sou a motoqueira.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Gozo


A maternidade é um lugar de profundo  prazer. Amamentar é um ato de profundo prazer.

Isso não tem nada a ver com romantizar a maternidade.

Trata-se de acolher a complexidade da experiência materna.

Trata-se de reivindicar o direito ao gozo contido na realização do que é humano.

Denunciemos incansavelmente a sobrecarga do trabalho reprodutivo. Lutemos contra ela com toda a nossa ira.

Mas não deixemos escapar o gozo que nos é de direito e que habita nossos corpos. Corpos de mulheres. Corpos de mães.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Tesouros


Minha avó paterna espalhava tesouros pela casa.

Bastava erguer a tampa das dezenas de potes distribuídos pelo apartamento para encontrar balas soft cortadas ao meio prontas para comer sem engasgar. Abrindo latas de biscoito, encontrávamos torradinhas finas de pão dormido, que ela não esquecia no forno até queimar, como eu. A caixinha de costura revelava uma fortuna em botões e variadas miudezas que rendiam horas de habilidades descobertas. Das gavetas surgiam objetos extraordinários como jogos de baralho, lápis de escrever com uma borrachinha encaixada na ponta, livros e folhetos contando histórias de santos, carmelitas descalças e sobre a origem da vida.

Ela plantava as peças pela casa e nós íamos encontrando, como se acaso fosse, aqueles pedacinhos de mundo.

Meu pai herdou esse hábito de espalhar tesouros. Os dele vêm escondidos dentro das palavras, liberadas no ar.

Ele as planta em apelidos engraçados, frases inusitadas, canções aparentemente sem sentido. Como uma lata de biscoitos colorida que aguarda confiante até ser aberta.

Assim, Isabeluca já sabe, em tão tenra idade, tanto ouvir rimas como defender-se da acusação de maluca. O singelo Juju que a prima trouxe da infância arrasta vistosos balangandãs fartamente ofertados às crianças. O gelo que escorrega inadvertidamente pela garganta em um susto não é vidro, e tudo bem porque pedra d'água derrete.

Um avô poeta. Ele nem sabe.

domingo, 2 de junho de 2019

Risadas


Elas têm uma brincadeira que consiste em gritar muito alto e de repente, para assustar uma à outra. Em seguida, morrem de rir.

Eu fico apavorada.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Universidade


Meu primeiro dia de aula na universidade, de manhã, naquela sala maior do prédio da Letras, que na minha lembrança parece um imenso auditório.

(Nos últimos anos do curso, à noite, ela não era suficientemente grande para acomodar as carteiras de todos os matriculados, e assistíamos às aulas em cadeiras que se amontoavam a ponto de não ser possível fechar as portas, ou então sentados no chão mesmo. Veio a greve de 2002.)

Pequena e sozinha, dedicada e leviana, pego o papel com o programa e a bibliografia do curso e leio logo no alto: “Aristóteles”. Foi tamanho o meu susto que levei algum tempo para compreender. Aquele da Grécia Antiga?... Apesar da reputação de inteligente e CDF da qual eu gozava entre amigos, inimigos e parentes, a adolescente do interior que se aventurava ali entre os grandes nunca havia pensado que realmente se lesse, mesmo, Aristóteles. Talvez um resumo em algum manual de Filosofia, mas não ler, ler mesmo. Muito menos eu mesma! Aristóteles.

Para mim, entrar na universidade foi desse tamanho.

Um atordoamento.

Claro que eu não sabia na época.

Levei sete anos para concluir aquela disciplina e me formar. Foi a última que eu cumpri: a disciplina introdutória do curso.

Desde menina eu achava que a universidade era o meu lugar, que ali eu estaria imersa no que mais admirava, que ali estaria em um lugar confortável. O grego me assustou tanto que eu precisei ficar dezessete anos lá dentro até passar o susto, me acostumar, e finalmente me aborrecer um pouco com tudo aquilo e tentar a vida lá fora.

Pouco tempo atrás, o emprego nunca planejado me fez voltar ali em busca do meu diploma. Aquele lugar onde vivi por mais tempo do que vivi em qualquer outra parte do mundo. Aquele papel desprezado no armário por anos. Chorei, encontrando a menina que chegou ali mais tonta do que uma borboleta, agradecendo a meus pais por me proporcionarem aquilo tão grande que me tirou o chão, comovida em observar a distância entre mim e a menina que lia Saussure no xerox debaixo das árvores.

Eu tive uma longa adolescência. E precisei da universidade para vivê-la e superá-la.

(Ali se pensa, se aprende profissão, se faz pesquisa, se aprende política, se descobre remédio, se inventa máquina, se observam as estrelas. E se vive. E a gente se faz grande.)

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Bolo de chocolate


Toda a semana que antecedeu o nascimento de Isabel, eu pensei em bolo de chocolate. O "meu" bolo de chocolate, favorito entre todos.

Isabel não podia demorar. Eu tinha uma cesárea prévia. Se ela passasse das 41 semanas eu tinha de começar a pensar em indução, menos tranquila com cesárea prévia.

Teresa havia chegado às 41 semanas sem nenhum sinal de trabalho de parto. Inventei pra mim que minhas gestações teriam o padrão de ser longas.

Isabel precisava saber que o mundo aqui fora é bom, que vale a pena nascer. Bolo de chocolate.

Semana cheia de tarefas, só consegui fazer o bolo no domingo. Em pródromos.

Na segunda-feira ela nasceu.

O mundo é bom.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Arrebatamento


Eu sei precisamente quando começou o expulsivo.

Como um raio, sem tempestade que o anunciasse, uma força eretora atravessou aquela mornidão lânguida que se espalhava dentro e fora de mim, e me colocou de pé.

De cócoras. Sobre os meus pés.

Eu era forte e ereta como são os machos.

E as fêmeas.

Eu era forte e ereta como pedem os professores de ioga. Como se um fio atravessasse meu corpo e fosse puxado acima da minha cabeça. Alinhando meu corpo com a delicadeza e a precisão exatas.

Quem puxava o fio era minha avó.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Luz


A recusa da ideia de Deus, espíritos ou quaisquer entidades sobrenaturais, bem como de inteligências ou vontades superiores atuantes na natureza, tal recusa não é necessariamente fruto de uma personalidade arrogante e apolínea, convencida de que tem - ou terá - a seu dispor toda a luz, sendo assim apenas desperdício largar-se a sonhar com seres da escuridão.

Não. Precisamente ao contrário, tal recusa pode ser a atitude daquele talvez capaz, por alguns instastes, de honrar da maneira mais profunda a escuridão: sem a pretensão de nomeá-la nem povoá-la com seus seres de meia-sombra.

Convivemos, o escuro e eu.

...


Eu escrevo porque é líquido.

Se fosse sólido,
esculpiria.