sábado, 28 de fevereiro de 2015

Perder


Da primeira vez que fiquei grávida, foi tudo direitinho, tudo dentro dos planos.

Eu tinha um relacionamento de muitos anos, um companheiro de amor e de vida. Nós sempre acalentáramos o plano dos filhos, mas era para depois. Um ano antes de engravidar, no meu trigésimo aniversário (sim, sim, minha vida é cheia de clichês...), passei por um momento estranho e arrebatador, em que a perspectiva de uma gravidez subitamente deixou de ser um receio e ganhou naturalidade. A ideia foi acolhida, o desejo amadureceu.

Houve preparativos práticos, também. Fui ao médico, fiz exames, tomei ácido fólico por três meses. Encaixei o cronograma do mestrado com a gravidez e a licença-maternidade. O marido pensou num modo de tirar férias após o nascimento do bebê.

Engravidei na primeira tentativa. Ficamos espantados, orgulhosos, eufóricos. Saímos para comemorar, e na mesma noite começamos a espalhar a notícia.

Num piscar de olhos, somos especialistas em beta HCG, ultrassonografias, placentas e sacos gestacionais. Sei tudo sobre os sintomas do primeiro trimestre, e felizmente quase não os sinto.

Por volta da 10ª semana de gestação, o exame de ultrassom vem decretar a ausência. A ausência do que era o mais presente em nós. Não há nada lá. O embrião não se desenvolveu. Gravidez anembrionária, aprendo. Ovo cego. Detesto esse termo.

O fluxo de instantes da vida não prevê espaço para o momento inesperado. Nunca estamos prontos. O incêndio nos surpreende de pijama, comendo sopa de pacotinho. Era no meio do dia. Almoçamos. Meu marido foi trabalhar, eu fui para casa. Não trabalhei. Fiquei pesquisando sobre aborto espontâneo na internet.

Na mesma tarde, uma amiga vem me ver, e eu lhe digo: “Hoje me tornei adulta. Perdi um filho.”

Me lembro claramente desse sentimento. Mas a situação técnica não era essa. Ovo cego, diz o Google. O embrião nunca se formou. Penso em parede cega – aquelas áridas laterais de prédio sem janelas, viradas para o nada. O nada. Não havia bebê. Sensação de ser traída pelo próprio corpo. Como minha barriga me deixava acariciar o bebê que não havia, como eu podia não saber?

Dizer “Quando perdi o bebê” me foi impossível por muito tempo, parecia que não era honesto ou preciso. Assumi a frase “Quando tive o aborto”. Mas hoje começo a me permitir dizer que perdi o bebê. Aceitar que perdi o bebê.

Eu perdi o bebê, aquele que eu acalentava, que estava dentro de mim, embora não crescesse no meu útero.

Os dias que se seguem são de um atordoamento estranho. Fico ressentida com o marido que não tem vontade de falar sobre o assunto. Eu quero falar. E chorar.

Tive um aborto espontâneo dias depois. Começou no banheiro de um auditório, estávamos num show de música. Saio do banheiro chorando. Seria o primeiro de uma série de choros contidos em lugares públicos. Durou alguns dias. O sangramento. O choro durou mais.

Não precisei de curetagem, clínica, hospital, nada. Um aborto espontâneo e completo. Útero limpo. Coração em frangalhos.

O filho que eu não tive veio me lembrar que a vida não se planeja. Podemos nos preparar, podemos acalentar o vindouro e deixar tudo arranjado para acolher sua chegada. Aprendemos no processo. Mas o caminho à frente nunca foi percorrido. Sempre.

O filho que eu não tive ajudava a preparar a mãe que eu seria.


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

(In)defectiva


A ginecologista nova não pergunta de ginecologias. Pergunta como está a vida. E ela fala sério, não se trata de "Tudo bem" e um sorriso amarelo. Não dá folga.

Lá pelas tantas estou chorando. (Ela tem lenços à mão, sabe de seus talentos.)

- Confesso que ando às voltas com o fantasma do corpo defectivo. E se tooodos os meus filhos ficarem sentados? Eu fiquei sentada. Ela ficou sentada. Talvez eu tenha uma bacia errada, uma coluna torta, uma maldição qualquer que sentará todos os meus bebês.

- Bebês sentados nascem bem, e até mais rápido. Se todos os seus filhos ficarem sentados, talvez seja porque você é uma mulher ótima para parir bebês sentados.

Há quem alimente nossos fantasmas. Encontrar quem ajude a exorcizá-los é uma dádiva. Ou uma conquista.