domingo, 27 de setembro de 2015

Luto


A gente custa a processar os eventos, sobretudo os que importam. Ou, como querem as gramáticas, custa-nos processá-los. O tempo e a luta. Não é só que nos custa, a gente também custa.

Custou. Custei. Foram muitos meses digerindo a perda e acalentando a esperança.

Onde podemos chorar? Quando? Tenho a impressão de que é tão exíguo o espaço do lamento – nessa sociedade em que somente o sucesso tem lugar, ou a vida é tão dura que é preciso endurecer de volta –, que ele precisa forçar a porta, aproveitar as brechas, brotar valente como as flores que crescem no asfalto.

Na primeira festa infantil após o aborto, precisei correr para o banheiro sem cumprimentar ninguém. Bastou entrever as crianças brincando no pátio para que aquele sentimento subisse do estômago e explodisse em choro.

A viagem de campo do mestrado, há muito planejada, esperávamos fazê-la com a gravidez no meio, ou até com o bebê. Nenhuma das duas opções teria sido muito conveniente – talvez tenham sido planos um tanto mirabolantes. Mas levar conosco a sua ausência pode ter sido ainda mais difícil. Na ilha linda cheia de praias “boas para ir com crianças”, as famílias alheias doíam na nossa.

A cada ciclo menstrual, eu chorava com raiva daquele fluido sanguinolento que era o fracasso. E que um dia acabei aprendendo a reverenciar.

Eu estava à espreita da nova gravidez que viria calar aquela perda. Queria surpreendê-la na esquina, lançar a armadilha perfeita. Impossível deixar a intimidade simplesmente fluir: é preciso seguir um calendário. Impossível apenas fruir essa intimidade: é preciso cumprir uma tarefa.

Talvez o universo seja feito de acaso e sabedoria. Não a sabedoria transcendente. A sabedoria da célula. Uma memória de saúde e de vida que se agarra aos nossos neurônios e, valente como aquela flor no asfalto, nos obriga a aguardar até que estejamos prontos.

Eu vivia metade do mês imbuída da missão de ficar grávida – e do medo de fracassar –, e a outra metade como se estivesse grávida. Entre o fracasso e o não eu.

Foi preciso abandonar a vida que eu queria ter e retomar a vida que eu tinha, para poder seguir. Foi preciso voltar a beber e fazer sexo por diversão. Foi preciso me reapropriar de mim mesma, para poder gerar.

A nova gravidez só se apresentou quando fui capaz de terminar de chorar a anterior. E quando consegui finalmente voltar a gostar da mulher que eu era.

domingo, 6 de setembro de 2015

Andaimes


Frequentemente, passo as noites correndo para fugir de alguém ou procurando alguma coisa. É sempre muito estressante, e às vezes acabo subindo em escadas ou estruturas altas que me apavoram, e não sou capaz de descer. Tenho aprendido a acordar antes que a jornada me canse ou assuste demais, mas nem sempre consigo. (Talvez por isso eu deteste aqueles filmes com muitas peripécias, sucessões intermináveis de eventos que não caminham para o desfecho, complicando cada vez mais a situação. Eles me deixam exausta. Se houver narrador, me irritam – ou entediam – ainda mais.)

No entanto, também circulo por um mundo conhecido, espaços recorrentes onde a vida se desenvolve. Eles constituem um universo que habito. Eu o conheço, reconheço lugares e coisas, vivo nele. As casas de meus avós, como eram na minha infância; a casa de uma tia onde não vivi tanto assim, mas que por algum motivo me fascina; casas onde morei. Mas também lugares que, apesar de sua existência exclusivamente onírica, constituem um mundo muito concreto no qual diferentes histórias se desenrolam, às vezes ao longo de anos.

Atualmente, tenho um apartamento. Pequeno, como o meu apartamento. Ele integra enredos nos quais estou sempre procurando ou tentando implementar formas de acomodar melhor toda a vida ali dentro. Diminuto, está todo preenchido e organizado, de uma maneira que, apesar de às vezes non sense, faz sentido.

Há noites em que ele transmuta-se em um imóvel enorme, uma dádiva que não sei bem como se realizou, uma casa com inumeráveis cômodos onde se poderiam fazer incontáveis coisas. Mas ela não é minha, de algum modo. Os cômodos são embaralhados, labirínticos; seus formatos são inusuais e há portas e corredores estranhamente posicionados. Apesar da grande disponibilidade de espaço, nunca consigo organizá-lo de modo satisfatório. Limito-me a alguns poucos cômodos, às vezes apenas um quarto, como uma habitante de hotel. Não gosto dali, não vale a pena.

Volto a meu apartamento pequeno. Descobri que ele tem uma porta, nos fundos, a qual dá para um salão onde caberia outro apartamento inteiro. Eu não sabia da existência dessa área, ela não me pertence, não sei por que está ali. É como aqueles apartamentos térreos que abrem para uma área que é do condomínio, mas não se comunica com o restante do terreno, formando na prática um quintalzinho, o qual do ponto de vista jurídico não poderia ser apropriado privadamente pela unidade, mas que também na prática não será convertido em área comum. Um limbo.

O espaço principal do salão é quadrado, mas em sua porção direita, segundo a perspectiva de quem entra, há um dente na planta que amplia um pouco mais a área, abrigando duas saletas contíguas. A porta do salão posiciona-se em seu canto esquerdo, e à direita há uma parede toda de vidro, a maior delas, que se estende por toda uma lateral do quadrado até o fim das saletas; algumas vezes ele é aberto nas laterais, como certos terraços de sobrado.

Durante um tempo, houve ali apenas objetos abandonados antes de mim. Restos de uma reforma que alguém fez. Não sendo francamente meu, assim ficou, demorei a tomar alguma atitude quanto a esse espaço.

Houve depois uma época em que ele começou a servir de depósito para umas poucas tralhas minhas, embora não me lembre de como as fui colocando lá. Umas das saletas era a sala de costura da minha mãe. Mas fazia muito calor ali.

Um dia me dei conta de que a outra saleta estava repleta de vasos velhos com plantas ressequidas. Comprei outros vasos, com flores e pés de mexerica. Às vezes, Teresa me ajudava na escolha das flores.

Minha mãe não quis mais a sala de costura. Não sei bem por quê. Parece que houve algum conflito, mas no fim ela também pode ter achado que ali era quente demais. Lembro-me vagamente de tentar manter o lugar como sala de costura para mim, mas não deu certo.

Esses usos foram interessantes, agregaram possibilidades, mas não desafogavam meu apartamento. Até que decidi transferir para as saletas o meu escritório. Coloquei uma mesa comprida, de frente para a parede de vidro; fiz qualquer coisa na estrutura que envolveu a aplicação de rebites em uma esquadria de alumínio; instalei uma estante de madeira escura repleta de livros, uma poltrona de couro, um papel de parede urbano e contemporâneo, e um fio de lâmpadas coloridas dependuradas aqui e ali. Uma combinação um tanto bizarra de consultório de um psicanalista sóbrio, escritório de um freelancer descolado e quarto de uma adolescente. Não consegui adjetivar a adolescente.

Tenho trabalhado ali.

Quanto ao salão principal, hoje ele está limpo e abriga apenas (no lado oposto à porta de vidro, no canto esquerdo de quem olha da saleta e em frente à porta de entrada do cômodo) uma grande banheira de mármore esverdeado. Ela é muito rasa e muito bonita. Minha filha descobriu que adora banheiras, e queria ter uma em casa. Eu sempre quis.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Se dê o respeito


Uma mulher precisa se dar o respeito. Então, menina, se dê o respeito.

Hoje, quando for sair, vista uma roupa apropriada. Apropriada a seu humor, apropriada a seu desejo. Nada será mais apropriado que isso. E você certamente estará deslumbrante.

Não dê confiança a qualquer um. Dê confiança – e o que mais você quiser dar – apenas a quem você quiser.

Sente direito. Por exemplo, vá a um parque e sente no chão. Tire o sapato, passe o pé na grama. Às vezes é até bom deitar, alongar as costas, esticar as pernas, abrir o corpo. Se puder, sente de frente para o mar, ou em frente a uma revista. Vá sozinha a um café, ou a um bar, e sente-se à vontade. Faça-se confortável e aproveite sua companhia muito bem sentada.

Você precisa se cuidar. Faça as unhas, pinte o cabelo. Ele já é bonito, claro, mas com tantas cores e texturas disponíveis, você pode se divertir muito. Ou não faça nada disso. Apenas tome um banho e sinta o carinho da água capaz de refrescar igualmente todas as peles, tenham ou não pelos e rugas. Divirta-se com seu corpo.

Não estrague suas festas de família se aborrecendo com a tia que pergunta se você não vai enfim arranjar um namorado ou se casar. Ela só quer o seu bem. Explique que finalmente você está numa relação séria, e que a moça vai acompanhá-la ao noivado do seu primo, no próximo mês.

Uma mulher precisa mesmo se dar o respeito. Pois ele não nos é oferecido a priori, nem dado de graça. E não há maior respeito próprio do que viver exatamente do jeito que você quer.