sábado, 30 de setembro de 2017

Confiança


Para quem está genuinamente preocupado em educar as crianças de modo que elas se tornem seres humanos menos vulneráveis a situações de abuso, especialmente abusos sexuais, me ocorrem várias estratégias que pode ser útil considerar.

Por exemplo, quando uma criança se recusar a comer, respeite sua recusa. Assim ela vai aprender uma lição absolutamente fundamental: que ela pode escolher o que entra ou não entra no seu próprio corpo, e que ninguém tem o direito de colocar nada nele à sua revelia.

Quando ela não quiser beijar a vovó ou aceitar o beijo da titia, receba isso com naturalidade. Caso contrário, ela pode entender que existem pessoas a quem ela está proibida de negar intimidade ou interações corporais. (E é bom jamais esquecer que a esmagadora maioria dos casos de abuso e violência é cometida por pessoas conhecidas, frequentemente muito próximas, portanto a máxima de não falar com estranhos serve para bem pouca coisa).

Quando você cometer uma injustiça com ela, e perceber isso, peça desculpas e converse. Talvez assim ela entenda que não existe autoridade absoluta, e que se ela sentir que o professor ou o padre a estão tratando de modo indevido, pode ser que eles estejam mesmo.

Quando ela se queixar de qualquer coisa, ouça com atenção e acredite que é verdadeiro e importante. Quando ela fizer o que não deve, corrija com respeito. Só assim ela vai entender que existe um espaço de confiança e acolhimento no qual ela pode se expor.

Permita que a criança observe e viva experiências normais e saudáveis relacionadas à nudez e às interações corporais. A mãe atravessando a casa pelada pra ir pegar uma fatia de mamão na geladeira e que no caminho ganha um abraço me parece uma cena de nudez saudável. Já uma propaganda de bebida (ou de móveis) exibindo uma desconexa moça de biquíni, não. Isso sim é uma nudez indecente.

Assim como me parece indecente ensinar às crianças que a interação entre corpos, nus ou não, é algo obsceno.

Sabemos que abuso não tem a ver com interação corporal ou com sexo, tem a ver com submissão, com exercício de poder. E as crianças são educadas ouvindo que ser uma boa criança é submeter-se, é ser boazinha e fazer o que lhe pedem, o que lhe mandam. Isso sim é criar uma pessoa vulnerável ao abuso.

Não vamos ensinar as crianças a serem fortes e confiantes plantando nelas a desconfiança de que em seus próprios corpos existe uma sujeira latente que pode ser descoberta por adultos doentes. Acredito que ensinar a soberania e a beleza inerentes a todo ser, a todo corpo, é algo muito mais eficaz.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Abraçada a uma árvore


Qual o aspecto mais difícil e desgastante da gravidez? O sono? Os enjoos? O peso? As dores nas costas? Nada disso. A parte mais cansativa da gravidez é o pré-natal...

Pré-natal significa que todo mês você tem pelo menos uma consulta e um pedido de exame para resolver. Consulta significa arranjar um horário na agenda que, idealmente, permita reunir eu, a médica e o marido, durante o horário de escola da filha mais velha, interferindo o mínimo possível no nosso horário de trabalho. Todo mês. Nos últimos meses, duas vezes por mês.

Mas não é nada comparado aos exames. Eu tenho o privilégio de um plano de saúde privado com uma cobertura bem razoável, e mesmo assim nunca tem horário... "Senhora, nesse sábado nós temos horário às 7 e 20 da manhã, na unidade do Tatuapé, pode ser?"... Ó, Jesus, eu moro no Butantã... E os termos "sábado" e "7 e 20 da manhã" não deveriam nunca coexistir em uma frase. E tem os exames de sangue com jejum, o nojento de glicemia, e eu já fiz xixi no copinho umas 60 vezes este ano...

Na gestação anterior, eu já havia ficado bastante de saco cheio do pré-natal. Fui acompanhada por uma médica bem convencional, com a qual acabei rompendo no final da gravidez, porque quis me empurrar a agenda de cesárea dela. Desta vez, consegui escolher uma médica com práticas mais próximas do que eu acredito ser importante, inserida no que se tem chamado de obstetrícia humanizada. Então tinha esperanças de um pré-natal mais leve, afinal esse pessoal não são aqueles médicos hippies que receitam chá e "deixam" a mulher parir abraçada a uma árvore? Pois acontece que o pré-natal da danada tem sido ainda mais meticuloso do que o primeiro...

Tudo isso pra dizer o seguinte: por que um atendimento tão "médico", tão "normal", tão dentro dos protocolos, que se baseia em parâmetros estabelecidos pela própria comunidade médica, que recorre aos mesmos exames de qualquer pré-natal etc., por que essa conduta causa tanta desconfiança nas pessoas em geral e manifestações tão ácidas de uma parte dos profissionais de saúde? Não é possível entender isso sem falar em autoritarismo e misoginia, simplesmente não faz sentido.

No fundo, o que torna a "obstetrícia humanizada" intolerável é o fato de que ela não submete a mulher. E isso, isso não pode.