quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Anticlímax

 

Ando pela cidade, oito meses após o início da maior pandemia do último século, que nos legaria um mundo totalmente diferente. 


Tudo parece igual.


domingo, 1 de novembro de 2020

anacrônica

 

sob o céu azul e as folhas que balançam com o vento

melancolicamente

sofro


não há nada

de inteligente

sofisticado 

charmoso

lânguido


sofria-se adequadamente no século XIX


hoje

sob o céu azul e as folhas que balançam ao vento 

como se sofre?


sábado, 29 de agosto de 2020

Cereja


Leio poesia iraniana e desejo aprender caligrafia persa.

Invejo os excelentes

e os serenos.


terça-feira, 19 de maio de 2020

Desencanto


“Ela não vê que toda gente
Já está sofrendo normalmente”

Esses versos me vêm à mente o tempo todo nesta época em que todos anseiam voltar à normalidade.

Normalidade: ganhar as ruas para... o trabalho.

A respeitável reivindicação da rua caminho do trabalho, espaço de consumo.

“Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal”

É desolador revisitar as canções dos anos 1960, 1970. Estava tudo lá, a denúncia, a utopia.

Já estava tudo lá, e nós estamos aqui.

Ela desatina, nós estiolamos.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Onze de maio


Hoje, 11 de maio de 2020, faz dez anos que eu soube que perdi meu bebê.

Levei quase dez anos para dizer "perdi meu bebê".

Eu não sabia a data. Por dez anos eu não soube a data.

Ontem pensei nisso e lembrei que ainda tenho os exames. Revirei a caixa. Em 11 de maio de 2010 fiz o exame que mostrou que não se formou o embrião.

Nunca houve embrião.

Eu estava grávida de um embrião que não havia.

Preciso repetir muitas vezes porque não entendo.

No dia 15 de maio começou o sangramento.

Eu estava no banheiro do CEU Butantã depois de um show do Xangai.

Eu estava em um show quatro dias depois de saber que meu bebê era um embrião que não se formou. Por quê?

Eu não chorei. Estava no banheiro do CEU Butantã saindo de um show, não era conveniente chorar.

Era véspera do dia das mães.

Algumas histórias precisam ser contadas muitas vezes.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Álcool em gel


Hoje decidi colocar o carregador de bebê nas costas e ir caminhar com minha filha mais nova em uma praça vazia. Ela tem estado irritada com a clausura; aponta para a janela e diz: "Eu não quero ficar aqui, quero ir lá". Me corta o coração. Combinei que iríamos, mas ela ficaria o tempo todo no carregador, não poderia brincar sozinha, nós iríamos apenas caminhar e olhar a praça. Ela concordou.

Na praça, contou os cachorros, reparou no parquinho, tem escorrega, tem areia, tem grama. Pediu para andar sozinha; expliquei que não podia, não podia mesmo.

Ela não notou, em frente aos muros ou por entre as frestas dos portões, os seguranças, a empregada doméstica de uniforme, o jardineiro negro carregando um saco de folhas.

Em um bairro rico, uma praça vazia cercada de casas bonitas muito muito distantes daquelas onde vivem as pessoas que das casas bonitas cuidam. E que no final do expediente levarão para seus bairros onde não há praças vazias um vírus vindo de partes do mundo que elas jamais visitarão, estejam os canais de Veneza claros ou turvos.

Na volta, Isabel cochilou no carro, um pouco inconsolável por não poder andar sozinha na grama da praça, e isso é algo para o qual não há mesmo consolo. Assim pôde não observar as três mulheres cercadas de crianças famintas com que cruzamos em um semáforo, outra praça e uma farmácia.

Chegamos em casa, tirei os sapatos, higienizamos as mãos. Haja antisséptico para a gente se sentir limpa neste mundo.

domingo, 15 de março de 2020

Cirandeira



Meu dia hoje começou com uma ciranda.

Elas ainda não sabem, mas tenho para mim a certeza de que em algum ponto de sua vida adulta Teresa e Isabel entenderão que tiveram a graça de passar sua primeira infância não em uma escola, mas no quintal das fadas. E fadas obviamente não iniciam reuniões colocando o projetor de Power Point na tomada. Elas fazem fadices. Ciranda, quando todos pedem que nos afastemos.

Tudo muito responsável, sem beijos ou abraços, e precedido por uma ciosa dose de álcool gel em cada uma das mãos envolvidas. As fadas não fazem discursos, elas mostram o que há para ver: de alguma forma, é preciso dar as mãos.

Eu tenho achado belo, embora profundamente angustiante, o modo como esta epidemia tem colocado cruamente diante de nós o escárnio quanto à crença absurda de que um mundo fundado nas individualidades possa funcionar. Aprendi desde criança: minha liberdade acaba onde começa a do outro. Mas vem o vírus rir de nossa insensatez e lembrar que havia uma outra trilha a seguir, e nós a abandonamos: minha liberdade só existe quando existe a do outro.

Você pode estocar quanto papel higiênico quiser, mas se seu motorista de aplicativo ou sua diarista não pararem de trabalhar – porque obviamente eles não podem, já que não há assistência social que lhes assegure nada –, o contágio vai se ampliar, e a Cuca te pega. Mas pelo menos ainda podemos contar que eles considerem procurar o posto de saúde caso se sintam doentes, já que temos um sistema de saúde universal – coisa que, por exemplo, a America great again não tem.

Fechemos as escolas, mas as crianças não podem ficar com os avós. Veja bem, muitas delas inclusive são criadas pelos avós. Aliás, mais precisamente, pelas avós. Dormem no mesmo quarto, o único disponível.

Governos mobilizam indenizações e fundos especiais para que as pessoas possam suspender o trabalho e se isolar em casa. Não por mera solidariedade aos menos favorecidos, mas porque cada trabalhador que não possa largar o volante por algumas semanas é um espalhador de vírus em potencial. Se ele apenas morresse sozinho, não haveria tanto alarde. Mas não. Aí a beleza do vírus.

Anos atrás, quando minhas preocupações viróticas de mãe de criança pequena na escola concerniam a meros resfriados, ganhei de presente uma linda perspectiva sobre as doenças contagiosas da primeira infância: elas são um instrumento de formação do organismo da criança, de constituição do corpo que será o dela. Não mais apenas as células herdadas dos pais, mas também aquelas que serão formadas no contato entre esse corpo herdado e o mundo. Um novo ser, realmente novo, porque alimentado por aquilo que já é.

Nenhum de nós está sozinho. E não adianta cada um fazer a sua parte.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Autorretrato



Eu sempre fui Atena. Pulei para o mundo diretamente da cabeça do meu pai, toda paramentada e pronta para ser sábia, justa e combativa.

***

Um dia, eu ainda não tinha dez anos, descobri que não poderia haver outro caminho para mim.

Durante a minha infância, na década de oitenta, toda semana chegava em casa uma Veja. No plástico. Naquele dia, uma de suas matérias veio me revelar algo de que ainda hoje não me recuperei. “Loira, burra e gostosa: o que todo homem quer”, dizia a manchete sobre Marilyn.

Antes mesmo de completar dez anos, sozinha, diante de uma revista semanal, eu descobri que não havia nenhuma possibilidade de eu me tornar uma mulher desejável.

Eu já suspeitava: sempre fui a criança inteligente mas que não era bonita.

Doeu tanto, que eu encaixei meu capacete até ele se confundir com minha própria cabeça, e segurei com tamanha firmeza meu escudo e minha espada, que nunca mais tive as mãos muito livres.

Eu era Atena. Se era aquilo que se desejava de uma mulher, eu me conformaria em viver não sendo desejável. Eu me conformaria em viver sendo inteligente mas não desejável.

***

Eu me tornei mãe. E, para muito espanto, a maternidade me foi um lugar de grande conforto. Me descobri acolhedora, agarrada com minha cria.

Atena não teria mãos para isso. Eu tinha.

E colo. Me fiz macia. E redonda. Redonda como a Terra, redonda como a Lua e redonda como Deméter.

Nunca mais desarredondei.

***

Deméter chama Afrodite. Essa frase não é minha.

Agora é.


Streaming


Uma amiga retruca, sobre minha tentativa de salvar um parágrafo que odiamos: mas isso quem está dizendo é você, não está aqui.

Ocorre que já não sei se alguma coisa do que eu vejo em algum lugar está lá ou está em mim.

Quando vi Capitão Fantástico me irritou tanto não encontrar uma brecha ali por onde eu pudesse entrar que tive de parar de assistir, fazer uma sessão de terapia, ficar grávida e depois ver o resto.

Assisto a Mad Men e penso: é uma série sobre mulheres. Especialmente sobre Sally.

Atravesso todo aquele uísque e fumaça e decido: é uma série sobre mulheres e crianças.

Uma série sobre mulheres muito privadas e crianças muito expostas.