terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Autorretrato



Eu sempre fui Atena. Pulei para o mundo diretamente da cabeça do meu pai, toda paramentada e pronta para ser sábia, justa e combativa.

***

Um dia, eu ainda não tinha dez anos, descobri que não poderia haver outro caminho para mim.

Durante a minha infância, na década de oitenta, toda semana chegava em casa uma Veja. No plástico. Naquele dia, uma de suas matérias veio me revelar algo de que ainda hoje não me recuperei. “Loira, burra e gostosa: o que todo homem quer”, dizia a manchete sobre Marilyn.

Antes mesmo de completar dez anos, sozinha, diante de uma revista semanal, eu descobri que não havia nenhuma possibilidade de eu me tornar uma mulher desejável.

Eu já suspeitava: sempre fui a criança inteligente mas que não era bonita.

Doeu tanto, que eu encaixei meu capacete até ele se confundir com minha própria cabeça, e segurei com tamanha firmeza meu escudo e minha espada, que nunca mais tive as mãos muito livres.

Eu era Atena. Se era aquilo que se desejava de uma mulher, eu me conformaria em viver não sendo desejável. Eu me conformaria em viver sendo inteligente mas não desejável.

***

Eu me tornei mãe. E, para muito espanto, a maternidade me foi um lugar de grande conforto. Me descobri acolhedora, agarrada com minha cria.

Atena não teria mãos para isso. Eu tinha.

E colo. Me fiz macia. E redonda. Redonda como a Terra, redonda como a Lua e redonda como Deméter.

Nunca mais desarredondei.

***

Deméter chama Afrodite. Essa frase não é minha.

Agora é.


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