quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Crise


Eu achava que ter um segundo filho era apenas continuar. Um pouco mais de trabalho, claro, mas já sei o caminho. Já sou mãe, já sei ser mãe. Voo de cruzeiro.

Evidentemente, era um equívoco. O segundo filho não é mais um filho. É outro filho. Eu sou outra mãe. A vida é outra.

Espantosamente, a maternidade foi um lugar de conforto para mim. Não que não tenha havido choro, cansaço e revoluções emocionais. Me senti sozinha, sem amigos, presa num cotidiano de Sísifo, incapaz de terminar o mestrado. Teve uma época que passei um mês dormindo na sala porque tinha medo do meu quarto. Pensei em largar o mestrado. Fui procurar terapia. Mas me sentia uma ótima mãe, forte e capaz de tudo que fosse necessário à minha filha. Eu tinha colo e leite, muito leite, leite forte e bom, e tudo se resolvia. Eu trabalhava em casa, estava sempre por perto, cozinhava, tinha tudo de que minha filha precisava. Meu corpo, minha voz, minha comida, tudo isso a envolvia poderosamente, e bastava.

Seis anos depois, com um novo bebê às vésperas de completar sete meses e frequentando o berçário há pouco mais de dois – pois agora eu tinha um emprego formal que não me permitia estar sempre por perto –, eu olhei para a bomba de leite uma tarde e pensei: “Não tem como eu tirar leite hoje. Não tem mais nada dentro de mim que eu possa dar para alguém hoje. Se eu ligar a bomba, nada vai sair de mim.”

Eu não bastava. Eu mal era capaz de existir.

Era uma tarde de segunda-feira. Eu estava no trabalho. Na verdade, eu estava sempre no trabalho. Quando não estava na editora, estava trabalhando em casa, à noite, aos finais de semana, durante a licença. Na inércia de quem trabalhou muito tempo por conta própria, comecei um novo emprego e continuei trabalhando paralelamente em projetos eventuais – que não são eventuais quando um sucede ao outro infinitamente. Eu estava conciliando um emprego de tempo integral, trabalhos paralelos, uma casa para cuidar, uma filha de seis anos e um bebê de seis meses em aleitamento exclusivo. E não estava sobrando nada de mim.

Aquela segunda-feira fora precedida de mais um fim de semana no qual eu precisava trabalhar. Mas não trabalhei. Nem descansei. No sábado, tive uma crise de enxaqueca, fui pro hospital e passei o dia mole de remédios. No domingo, meu marido estava de plantão e eu fiquei com as meninas. Isabel não passou meia hora fora do meu colo, numa demanda intensa e atípica. Mamou o dia todo. Nas brechas, eu providenciava alguma coisa para eu Teresa comermos. Eu tinha muita fome. Foi tudo que consegui fazer. Ela seguiu acordando e mamando noite afora. Quando levantei na segunda-feira para ir ao trabalho, nem parecia que eu tinha dormido.

Amamentar em livre demanda é uma coisa. Sustentar a amamentação exclusiva por meio de ordenha é outra. Naquela segunda-feira, o estoque de leite estava um pouquinho menor do que Isabel precisava no dia. Eu tinha que deixar mais em casa, antes de ir trabalhar. Mas não tinha forças... Peguei a bomba e minha caneca gigante de café e fui pro trabalho. Meu peito iria encher ao longo do dia.

Mas não encheu. Eu não tinha coragem de ligar a bomba. Tinha medo. No meio da tarde, finalmente consegui ordenhar um pouco. Saí um pouquinho mais cedo do trabalho para amamentar Isabel na creche, já que o leite lá estava pouco. Eu me sentia exausta, frustrada, fracassada. Sustentar a amamentação exclusiva era o mínimo que eu queria garantir. Que eu devia garantir. Minha bebê não teria minha presença todos os dias, mas teria meu leite, nosso leite. Como eu poderia garantir alguma coisa para ela, se não estava sustentando nem a mim?

Peguei as meninas na escola, comprei sanduíches prontos que comemos no carro. O plano era chegar em casa e ir direto pra cama. Fomos. Mas Isabel não se acalmava e continuava querendo colo o tempo todo. Meu marido de plantão, voltaria só de madrugada. Então eu surtei, entrei em pânico. Liguei chorando pros meus pais, que moram do outro lado do estado. Eu tinha medo do escuro. Percebi que não podia ficar sozinha em casa com as crianças aquela noite, e fui para ac asa de uma amiga. Voltei de madrugada, quando meu marido saiu do trabalho.

Ele ficou com as crianças para eu poder dormir. Na exaustão, eu não dormia, dominada por pensamentos obsessivos. E finalmente me dei conta: eu não precisava ficar sem minha filha, o que eu precisava era ficar com ela. Não era meu bebê que estava me esgotando, era o conjunto da minha vida. E ela estava gritando isso para eu ouvir, há 48 horas.

No dia seguinte, fiquei em casa. Dormi um pouco mais. Escrevi para meus clientes e expliquei que estava doente, repassei projetos. Arrumei meu armário e guardei pilhas de coisas minhas que se amontoavam há semanas pela casa porque eu não conseguia tempo para arrumar. Meus pais apareceram, encheram o congelador de comida. (Me vulnerabilizar diante dos meus pais foi algo cuja importância não consegui medir ainda. Suspeito que seja enorme.)

Decidimos, eu e meu marido, que Isabel começaria a comer frutas amassadas na creche. Ela estava completando sete meses, mas ainda não sentava com firmeza, ainda engasgava um pouco, por isso seguíamos mantendo-a exclusivamente no leite. Queríamos que ela começasse a comer com autonomia. Essa havia sido nossa experiência com a Teresa. Mas tudo era diferente agora, e Isabel passaria pelas papinhas. Chorei ao conversar com a berçarista, claro, que me falou do privilégio que tem um bebê cuja mãe trabalha e consegue chegar aos sete meses em aleitamento materno exclusivo.

Isabel completou nove meses, já senta, come e me olha com aqueles olhos. E eu vou catando meus pedaços. Tentando entender que com organização, dedicação e força de vontade não se consegue tudo. Isso é uma bobagem. Mas com ajuda se consegue muita coisa. Ajuda dos amigos prontos a acolher, dos pais que correm em socorro, do marido parceiro, da berçarista, da terapeuta, da faxineira. Das tantas mulheres que me acolhem, dentro e fora de mim. E de um bebê incansável que não deixa de me lembrar o tamanho da minha humanidade.