segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Para falar de desmame


Teresa parou de mamar. Encerramos nossa amamentação.

Poderia dizer que desmamou (e desfraldou, aliás...). Mas eu detesto essas palavras. Não sei bem por quê. Neurose de mãe superprotetora que não quer que a filha saia de baixo das asas. Receio da ideia de estar tirando alguma coisa dela. Recusa em fazê-la objeto de um outro ser que lhe impõe uma falta, uma carência.

Ela conquistou seu desmame e seu desfralde. Não foi desmamada nem desfraldada. Ela está crescendo (preciso dizer que a menina cresce mais rápido que o tempo), e assim coisas novas podem entrar em sua vida, como a capacidade de comer de tudo, de dormir sem sugar, de ganhar o banheiro.

Daí que um dia, contando a uma amiga que minha filha não mamava mais, fiquei procurando uma frase para dizer em vez de “Foi um processo bem natural...” Ela ficou um pouco espantada com a minha recusa em relação à palavra “natural”, hoje tão frequentemente associada a apreciações positivas.

Dia desses li qualquer coisa em qualquer lugar sobre pesquisadores terem identificado comportamento homossexual em animais. A ideia era que esse é, portanto, um comportamento muito “natural”, logo não deveria causar escândalo que seja observado entre seres humanos. A classificação de “natural” legitima o ato. Se é natural, devemos respeitar, pois a natureza não é boa nem ruim (embora haja quem diga que ela é sábia), a natureza apenas é – e quem seria o insano a se rebelar contra aquilo que apenas é? Bem, a mim me parece que o comportamento homossexual entre seres humanos é legítimo não porque ele é da natureza, mas porque é da humanidade. Porque é uma realização do afeto e da sexualidade humana. Porque é um dos caminhos socialmente construídos para o estabelecimento de relações humanas, para a satisfação e crescimento mútuo dos envolvidos.

Seres humanos não são naturais. E o que dizer depois da desfaçatez de lançar assim uma frase categórica para cuja sustentação eu não tenho repertório filosófico? Nós temos fisiologia. Temos instintos. Mas conquistamos a capacidade de refletir de maneira inédita sobre nossa própria existência e sobre a alteridade. E sobre nossa fisiologia e nossos instintos. A individualidade iluminista e liberal instrumentalizada pelo mundo do dinheiro e do trabalho (cá estou eu metendo-me em filosofias que não conheço) alimenta uma atitude aparentemente libertadora de reivindicação do natural. Porque algo precisa se opor ao sufocamento do corpo, da fisiologia e do instinto sob a lógica da máquina e do relógio.

Mas essa oposição não pode ser a reivindicação do natural. O natural é aquilo que não somos mais, e já foi dito que a história só se repete como farsa. Se estamos para utopias, a minha é a do humano, não a do natural, a da realização plena do humano. Seja lá o que isso for.

(A expressão “parto natural humanizado” revela bem que o “seja lá o que isso for” é algo que ainda não sabemos bem o que é. Talvez a possibilidade de um atendimento à mulher que constitua de fato um caminho em direção a essa utopia seja algo tão inimaginável que ainda não se pôde nomear.)

E nessa mesma trilha vem o “desmame natural”, entendido como aquele que respeita os ritmos da mãe e da criança, que respeita as fisiologias e as necessidades mais íntimas daqueles dois seres.

Eu acredito que vivi o processo de amamentação da minha filha com a profundidade que a expressão “necessidades íntimas” sugere. O que ele me fez descobrir a respeito de mim mesma e o que me permitiu refletir sobre a relação entre pais e filhos foi impressionante, para mim. E o fim dessa amamentação se estabeleceu de maneira gradual, lenta, penso que respeitosa para nós duas e, até, prazerosa e divertida.

E isso não foi natural coisíssima nenhuma!

Foi construído. Foi construído pela persistência para que a amamentação se estabelecesse. Foi construído nos primeiros dias, quando ela não conseguia mamar e aceitou o leite ordenhado oferecido pelo pai. Foi construído naquelas mamadas doloridas. Foi construído naquelas mamadas prazerosas, de troca de olhares profundos. Foi construído quando fazíamos nosso mamá no sling, na yoga, no bar. Foi construído quando entendi que os infinitos despertares noturnos não eram bons para mim. Foi construído quando me irritei com a demanda que me parecia grande demais. Foi construído quando parei de interromper refeições e outras coisas importantes para amamentar. Foi construído quando entendemos que podíamos jantar e conversar juntas, e que isso também era gostoso. Foi construído quando percebemos que brincar na festa podia ser mais gostoso que mamar na festa. Foi construído em cada momento em que ela percebeu que se precisasse mesmo, poderia mamar no meio da noite, da refeição ou da festa. Foi construído em cada noite em que a amamentação era necessária para trazer o sono, e em cada noite em que dormimos cantando. Foi construído a cada vez que ela mamava um tiquinho, ria porque o leite tinha acabado e pedia o outro peito. Foi construído a cada noite em que contei a história da menina que não sabia comer e foi crescendo e agora sabia, e ela enumerava todas as coisas que já sabia comer. Foi construído até o último momento, quando nossa amamentação se encerrou quase que com uma gargalhada.

Isso não é natural. Precisamos de outra palavra. Isso é uma busca deliberada por autoconhecimento e disposição consciente para se ligar ao outro. Isso é humano.

Teresa parou de mamar. Encerramos nossa amamentação. Da última vez, ela tentou, começou a rir desabridamente e lançou “Não tem nada, né, mamãe? É porque o peito sabe que eu já sei comer.” Assim encerramos essa fase da nossa relação: juntas e rindo.

Que sejamos capazes de caminhar sempre assim, minha filha.

domingo, 2 de novembro de 2014

A criança e a palavra, ou por que menina também pode falar palavrão


Esses dias assisti a um vídeo de uma campanha sobre violência contra a mulher, em que meninas vestidas de princesa – com direito a cetim cor-de-rosa, tiara e purpurina – enchem a boca de palavrões, bem daqueles que a mamãe e a professora não deixam a gente falar, para lançar uma provocação: seriam esses palavrões mais chocantes, prejudiciais e ofensivos do que uns tantos outros que têm trânsito livre por aí, como desigualdade salarial, violência contra a mulher ou estupro? Para arrematar, um garoto também vestido de princesa entra em cena disparando gírias tipicamente masculinas, para esculhambar o tratamento que os homens dão às mulheres.

Não sei da efetividade da campanha, mas a pegadinha funciona: as pessoas ficam escandalizadas com a boca suja da criançada.

É impressionante como a sociedade é prescritiva em relação ao uso da língua. Há muitos anos, quando eu era professora de Língua Portuguesa, um colega, que atuava de maneira muito estreita com o movimento pela reforma agrária no Brasil, veio conversar comigo sobre sua vontade de criar um projeto para desenvolver as capacidades de comunicação e expressão dos trabalhadores rurais com quem ele militava. Ele se preocupava, como de costume, com o fato de que aquelas pessoas não dominavam a norma culta e isso as prejudicava de alguma forma. Emprestei-lhe um livro do Marcos Bagno, que eu adoro, chamado Preconceito linguístico, em que o autor discute e demonstra o quanto nossa apreciação sobre a “boa língua portuguesa” é preconceituosa e equivocada, e o quão político isso é (ler o livro é tarefa prazerosa para uma sentada, pois é curtinho e plenamente acessível a não linguistas). Isso mudou a perspectiva do meu colega a respeito do projeto que vislumbrava.

Esse preconceito tão amplamente arraigado em nossa sociedade é propagado de maneira sólida inclusive pela escola, instituição supostamente encarregada de ampliar nossas possibilidades de conhecer, questionar e produzir o mundo. Desde muito cedo, procuramos moldar a expressão linguística das crianças – indicando o que é certo e errado, feio e bonito, o que pode e não pode –, com o mesmo tom de quem difunde preceitos morais. Em minha opinião, fariam melhor os pais e a escola se procurassem proporcionar aos pequenos a experiência da complexidade da linguagem (já seria muito bom se não se esforçassem tanto para bloqueá-la, porque as crianças acham por si mesmas muitos caminhos para alcançá-la). São muitos os registros, os jargões, os dialetos; todos compõem a complexidade da língua; todos têm razão de ser; cada um deles que conhecemos acrescenta algo à nossa capacidade de expressão e de apreensão do mundo. Isso não significa que precisemos ou devamos abdicar do papel de mediação e até de proteção que o processo educativo implica – eu posso evitar que minha filha assista a cenas de sexo explícito na televisão, mas nem por isso vou dizer a ela que sexo é feio.

A literatura vive entre o poder e o limite da palavra. Toda uma legião de poetas românticos debateu-se com uma língua dilaceradoramente incapaz de dar voz a seu sentimento. Graciliano Ramos descobre em um de seus meninos o espanto e o temor de se deparar com o desconhecido, não só o ainda não visto, mas o inomeado: “Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas.” A criação e o aprisionamento são as prerrogativas contraditórias da palavra, entendeu a Joana de Lispector: “É curioso como não sei dizer quem sou [...] Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.” Guimarães Rosa viu tantas possibilidades na língua que lhe foi legada, que misturou tudo e fez outra.

E nós, pais e educadores, com a pretensão de estar bem formando o que virá, nos amesquinhamos apontando “feios” e “errados”... Considero aterrorizante que a nossa educação linguística – ou seja, a educação relacionada a uma prática social de tamanha amplitude e diversidade – tenha como referência e horizonte a definição e o domínio de um padrão muito restrito e uniforme, e a supressão e estigmatização de tudo o que não corresponde a ele.

Na ânsia de formatar o comportamento aceitável, criamos para as crianças uma prescrição altamente restritiva sobre o uso da língua. Criamos zonas proibidas da linguagem como criamos zonas proibidas do corpo: “Tira a mão daí”, “Não é assim que se fala”, “Não fala isso, que é feio!”. E ainda mais para as meninas. Em nosso imaginário e nossa prática marcados pela dominação masculina, do mesmo modo como a manipulação do próprio corpo é mais aceitável quando observada em meninos, a liberdade de manipulação da língua também é mais ampla para eles: o palavrão lhes cabe melhor (e o vídeo das meninas “boca suja” sabe disso, tanto que o garoto não fala palavrão – chocaria muito menos , mas adota ironicamente gírias e expressões tidas como masculinas). Meninas não correm, meninas não gritam, meninas não falam palavrão. Às mulheres cabe um espaço restrito, um corpo restrito, uma língua restrita.

A língua, prática social, criação permanente, coisa viva, alimenta-se daquilo que fomos capazes de forjar, e nos permite apreender o que há. Deusa de duas caras, oferece-nos os instrumentos e os obstáculos do instituído, e observa como nos saímos na extenuante-regozijante tarefa de dar forma ao vindouro, criar a criação. Não serei eu, como mãe, que abraçarei a tarefa de amesquinhar isso. Ou de ensinar a minha filha que seu direito a essa complexidade é menor que o de qualquer outra pessoa.

Eu não ensino a minha filha que menina não fala palavrão. Abraço a missão de ajudá-la a encontrar os meios para dizer tudo o que ela desejar.