terça-feira, 24 de outubro de 2023

Óculos

 

Agora ela tira sistematicamente os óculos para escrever, sentindo que isso a coloca de forma definitiva em outra fase da vida. A miopia carregada desde a infância é antídoto para a presbiopia surgida na meia-idade, de modo que os óculos que por toda a vida corrigiram, agora distorcem.

No café do hospital, escreve enquanto aguarda a liberação dos resultados de seus exames. A telemedicina não fechou diagnóstico para o vermelhão que apareceu na barriga: pode ser da covid e pode ser qualquer outra coisa. A médica do PS também foi evasiva, não esclareceu nada, acha que pode ser tudo uma coincidência. Pediu exame de sangue, outro de gripe e mais a tomografia do pulmão.

A cabeça flutua da recordação da escarlatina das crianças para o filme que viram juntas uns dias atrás, no qual uma das irmãs morre por causa dessa doença. Enfrenta a difícil constatação de que sempre que está um pouco doente é assaltada em algum nível pelo desejo mórbido de receber um diagnóstico moderadamente grave, com necessidade de internação. Algo que estabeleça uma barreira de contenção de sua vida comum, que a coloque em um estado excepcional e possa privá-la de todas as suas obrigações. Protegê-la com a redoma da debilidade de todas as exigências do mundo. O mundo lá fora em suspenso e ela podendo cuidar de nada, ninguém autorizado a esperar nada de sua parte. A redoma da debilidade.

Sua agenda deste ciclo está muito bonita, toda preenchida com as cores devidamente codificadas. Muitas páginas escritas. Muitas tarefas cumpridas.

Ela tem feito muitas coisas. Tem descoberto muitas coisas sobre si. E continua não sabendo o que quer de verdade.

Agora ela ensaia escrever na terceira pessoa, embora saiba que não engana ninguém.