quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Crescer


Do pouquinho que estudei de Paulo Freire durante minha formação em educação, há uns dois mil anos, restaram na memória a crítica à “educação bancária” (o professor “deposita” conhecimentos em seus alunos, que os “devolvem” nos exames) e a ideia de que a educação acontece quando mobiliza o sujeito em sua potência, quando toca o interesse dos sujeitos. O que, me parece, é muito prático quando se trata de educar crianças, porque as crianças se interessam por nada menos do que a totalidade da vida.

Estamos em uma semana muito importante aqui em casa. Eu não tinha notado, no meio do fluxo do cotidiano. É a última semana de Teresa no primeiro ano da escola. Da escola das crianças grandes com mãos enormes capazes de segurar o mundo inteiro. E a cada dia ela traz para casa uma preciosidade para nos lembrar da grandeza do seu ano. Obras de arte, livros, autorretratos, poemas, pedaços de cenário. Ela e seus amigos escreveram e encenaram uma peça de teatro este ano. E compuseram músicas. Escreveram um livro ilustrado. E criaram coletivamente um procedimento acordado para lidar com os colegas que fizerem coisas que não são muito boas, como atropelar o amiguinho no brinquedão.

Ela está alfabética e ortográfica e tem ótimo desenvolvimento de lateralidade, aprendi com a coordenadora. E ninguém precisou atormentar a menina pra isso. Não tem ninguém rabiscando suas obras com caneta vermelha. Ela entendeu que seu modo de escrever é precioso e potente, mas se interessa pelo modo “dos adultos”, quer conquistá-lo. Nós temos essa vantagem que é quase uma trapaça: as crianças nos admiram. É impressionante como podemos ser desastrados a ponto de perder esse trunfo.

Hoje ela me confidenciou que este ano foi a primeira vez que ela soube que existem eleições, e me explicou longamente diversas de suas ideias a respeito. Ela está muito atenta à sobreposição não coincidente das teias de relações pessoais e políticas. Nós passamos os últimos meses ouvindo o noticiário político juntas. No início ela concedeu trocar a música pelo noticiário porque eu pedi, mas agora gosta, e essa confissão sai com um risinho engraçado.

Ela quer saber se existem mais mulheres ou homens no mundo. Se existem mais mulheres, porque estão no poder homens que não são bons para as mulheres? Uma boa matemática.

Choro no carro lendo as fichas de autoapresentação de cada criança. A gente oferece uma ficha com lacunas, e eles devolvem o simples imenso: “Sou DESENHISTA como A FRIDA”.

Penso na frase que é uma das minhas favoritas da vida: “Mas se eu inventei, como é que não existe?” 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Posteridade


Ela lança para a irmã:

- Sua mini-Einstein!

Aguardo intrigada e em silêncio que a própria vida me esclareça. Nada. Algum tempo depois:

- Hahaha, sua mini-Einstein!

A curiosidade obviamente me derrota:

- Por que mini-Einstein?...

- É que ela vive botando a língua pra fora.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

rompasse


eu escrevo arrumadinho
não sei fazer de outro jeito
não sei viver de outro jeito

às vezes
eu queria

escrever rasgado
viver rasgando

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Precinecessário


Ele colocava fatias de bacon direto sobre a chapa do fogão a lenha, e nada nunca foi melhor que bacon. Banana da terra com canela chega perto. Mingau de aveia não...

Foi ele que me ensinou a fazer arroz.

Era com ele o mar. Mesmo caçoando da nossa frescura, levava a gente no colo até depois das algas. E uma vez teve medo de sermos levados pela correnteza. Não percebi o medo enquanto ele nos tirava dali, encoberto pelo habitual autocontrole.

Minha música é toda ele.

Eu era acordada no sábado de manhã com a casa preenchida por Luís Gonzaga, e até hoje lá em casa Luís respeita Januário.

Eu não fui preparada para o gosto musical da FFLCH pela escola meio intelectual meio de esquerda que nunca frequentei, mas por ele próprio, que me mostrou os mesmos poucos discos de Chico Caetano Betânia Vinícius e me ensinou pessoalmente que cálice era cale-se.

Se não fosse por você, eu não poderia correr no parque chorando com Duda no frevo, após o primeiro turno, para pensar nas eleições e um pouco amargar nossos votos antípodas.

Apesar de mim e de você, você está em mim e eu em você.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Erro de margem


Receitas de uma panela só são ótimas para jantares práticos em dias difíceis.

Você pega uma frigideira grande, de preferência antiaderente, e coloca nela uma colherada enorme de manteiga, mais um fio de azeite. Deixa no fogo baixinho enquanto corta algumas batatas em cubos. Os cubinhos ficam ali cozinhando e dourando devagar na manteiga, enquanto você pica um maço de espinafre. Quando a batata estiver cozida, o espinafre entra. Antes, alho. Empurrando as batatas para as bordas da frigideira, abre-se um espaço onde você pode dourar em azeite um alho bem picadinho, para em seguida jogar o espinafre por cima. Vai mexendo e temperando com um salzinho e pimenta-do-reino. Por fim, é só abrir algumas cavidades no meio da mistura e quebrar um ovo em cada uma delas. Gema mole, ou nem vale fazer... Mais sal e pimenta sobre seu ovinho.

Fica delicioso.

Fiz hoje para o jantar com as meninas, enquanto ouvia na TV os resultados da mais nova pesquisa eleitoral.

No fim, sempre haverá receitas culinárias para publicar.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Crise


Eu achava que ter um segundo filho era apenas continuar. Um pouco mais de trabalho, claro, mas já sei o caminho. Já sou mãe, já sei ser mãe. Voo de cruzeiro.

Evidentemente, era um equívoco. O segundo filho não é mais um filho. É outro filho. Eu sou outra mãe. A vida é outra.

Espantosamente, a maternidade foi um lugar de conforto para mim. Não que não tenha havido choro, cansaço e revoluções emocionais. Me senti sozinha, sem amigos, presa num cotidiano de Sísifo, incapaz de terminar o mestrado. Teve uma época que passei um mês dormindo na sala porque tinha medo do meu quarto. Pensei em largar o mestrado. Fui procurar terapia. Mas me sentia uma ótima mãe, forte e capaz de tudo que fosse necessário à minha filha. Eu tinha colo e leite, muito leite, leite forte e bom, e tudo se resolvia. Eu trabalhava em casa, estava sempre por perto, cozinhava, tinha tudo de que minha filha precisava. Meu corpo, minha voz, minha comida, tudo isso a envolvia poderosamente, e bastava.

Seis anos depois, com um novo bebê às vésperas de completar sete meses e frequentando o berçário há pouco mais de dois – pois agora eu tinha um emprego formal que não me permitia estar sempre por perto –, eu olhei para a bomba de leite uma tarde e pensei: “Não tem como eu tirar leite hoje. Não tem mais nada dentro de mim que eu possa dar para alguém hoje. Se eu ligar a bomba, nada vai sair de mim.”

Eu não bastava. Eu mal era capaz de existir.

Era uma tarde de segunda-feira. Eu estava no trabalho. Na verdade, eu estava sempre no trabalho. Quando não estava na editora, estava trabalhando em casa, à noite, aos finais de semana, durante a licença. Na inércia de quem trabalhou muito tempo por conta própria, comecei um novo emprego e continuei trabalhando paralelamente em projetos eventuais – que não são eventuais quando um sucede ao outro infinitamente. Eu estava conciliando um emprego de tempo integral, trabalhos paralelos, uma casa para cuidar, uma filha de seis anos e um bebê de seis meses em aleitamento exclusivo. E não estava sobrando nada de mim.

Aquela segunda-feira fora precedida de mais um fim de semana no qual eu precisava trabalhar. Mas não trabalhei. Nem descansei. No sábado, tive uma crise de enxaqueca, fui pro hospital e passei o dia mole de remédios. No domingo, meu marido estava de plantão e eu fiquei com as meninas. Isabel não passou meia hora fora do meu colo, numa demanda intensa e atípica. Mamou o dia todo. Nas brechas, eu providenciava alguma coisa para eu Teresa comermos. Eu tinha muita fome. Foi tudo que consegui fazer. Ela seguiu acordando e mamando noite afora. Quando levantei na segunda-feira para ir ao trabalho, nem parecia que eu tinha dormido.

Amamentar em livre demanda é uma coisa. Sustentar a amamentação exclusiva por meio de ordenha é outra. Naquela segunda-feira, o estoque de leite estava um pouquinho menor do que Isabel precisava no dia. Eu tinha que deixar mais em casa, antes de ir trabalhar. Mas não tinha forças... Peguei a bomba e minha caneca gigante de café e fui pro trabalho. Meu peito iria encher ao longo do dia.

Mas não encheu. Eu não tinha coragem de ligar a bomba. Tinha medo. No meio da tarde, finalmente consegui ordenhar um pouco. Saí um pouquinho mais cedo do trabalho para amamentar Isabel na creche, já que o leite lá estava pouco. Eu me sentia exausta, frustrada, fracassada. Sustentar a amamentação exclusiva era o mínimo que eu queria garantir. Que eu devia garantir. Minha bebê não teria minha presença todos os dias, mas teria meu leite, nosso leite. Como eu poderia garantir alguma coisa para ela, se não estava sustentando nem a mim?

Peguei as meninas na escola, comprei sanduíches prontos que comemos no carro. O plano era chegar em casa e ir direto pra cama. Fomos. Mas Isabel não se acalmava e continuava querendo colo o tempo todo. Meu marido de plantão, voltaria só de madrugada. Então eu surtei, entrei em pânico. Liguei chorando pros meus pais, que moram do outro lado do estado. Eu tinha medo do escuro. Percebi que não podia ficar sozinha em casa com as crianças aquela noite, e fui para ac asa de uma amiga. Voltei de madrugada, quando meu marido saiu do trabalho.

Ele ficou com as crianças para eu poder dormir. Na exaustão, eu não dormia, dominada por pensamentos obsessivos. E finalmente me dei conta: eu não precisava ficar sem minha filha, o que eu precisava era ficar com ela. Não era meu bebê que estava me esgotando, era o conjunto da minha vida. E ela estava gritando isso para eu ouvir, há 48 horas.

No dia seguinte, fiquei em casa. Dormi um pouco mais. Escrevi para meus clientes e expliquei que estava doente, repassei projetos. Arrumei meu armário e guardei pilhas de coisas minhas que se amontoavam há semanas pela casa porque eu não conseguia tempo para arrumar. Meus pais apareceram, encheram o congelador de comida. (Me vulnerabilizar diante dos meus pais foi algo cuja importância não consegui medir ainda. Suspeito que seja enorme.)

Decidimos, eu e meu marido, que Isabel começaria a comer frutas amassadas na creche. Ela estava completando sete meses, mas ainda não sentava com firmeza, ainda engasgava um pouco, por isso seguíamos mantendo-a exclusivamente no leite. Queríamos que ela começasse a comer com autonomia. Essa havia sido nossa experiência com a Teresa. Mas tudo era diferente agora, e Isabel passaria pelas papinhas. Chorei ao conversar com a berçarista, claro, que me falou do privilégio que tem um bebê cuja mãe trabalha e consegue chegar aos sete meses em aleitamento materno exclusivo.

Isabel completou nove meses, já senta, come e me olha com aqueles olhos. E eu vou catando meus pedaços. Tentando entender que com organização, dedicação e força de vontade não se consegue tudo. Isso é uma bobagem. Mas com ajuda se consegue muita coisa. Ajuda dos amigos prontos a acolher, dos pais que correm em socorro, do marido parceiro, da berçarista, da terapeuta, da faxineira. Das tantas mulheres que me acolhem, dentro e fora de mim. E de um bebê incansável que não deixa de me lembrar o tamanho da minha humanidade.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Linhagem


Minha avó materna teve dez filhos.

O padrão de gênero da nossa língua neutraliza a fatídica composição dessa prole, como se todas as crianças viessem ao mundo simplesmente crianças.

Minha avó teve três filhos, apenas. Todas as outras sete foram filhas.

Sem conceder falsas esperanças a ninguém, elas dominaram quase toda a primeira metade da potência reprodutiva de minha avó. Uma filha após a outra, aquela mulher - a quem fora suprimido o direito de negar qualquer coisa de si exceto seu próprio gozo - negou ao mundo seus varões por quatro vezes consecutivas, e depois mais uma e outra e ainda outra vez. Sete.

Populando de mulheres aquela que era obviamente uma casa de mulheres. E cujas mulheres precisavam por isso mesmo ser sufocadas.

A dor de trazer ao mundo mulheres, sendo mulher. A delícia de trazer ao mundo mulheres, sendo mulher.

Minha mãe. Minhas tias. Minha avó. Mulheres em mim.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Oportunidades


Uma vez, num treinamento do trabalho, a palestrante perguntou: "E se você estivesse no elevador um dia e o presidente da empresa entrasse para ir até o último andar. Você tem dois minutos ali com ele pra falar o que quiser. O que você falaria? Qual a coisa mais importante que você tem para dizer a ele? Vender seu peixe em dois minutos. Como?"

Bem. Eu, pobre de mim, pega de surpresa ainda, ficaria intimidada e me refugiaria revirando mensagens no celular, nossa sagrada bolha contemporânea de insociabilidade. Levantando de esgueio um dos olhos, talvez lançasse: "Que frio está hoje, né?"

E se você estivesse no elevador um dia e entrasse uma candidata à Presidência do país para ir até o último andar. Você deu sorte, pois o prédio é muito alto e você tem um pouco mais do que dois minutos para vender o seu peixe. Fazer sua melhor pergunta. Tocar no essencial. O mais importante a ser dito sobre a vida do seu país.

Você, que não é um pobre coitado como eu e não se intimida facilmente, não desvia os olhos e lança impávido: "Então, o Stalin foi uma cara bacana? Mao foi um cara legal?"

Assim já não me sinto envergonhada por me limitar a falar do tempo.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Necessidades


Eu estou sempre com fome.
Eu estou sempre com calor.
Eu estou sempre cansada.

Tão difícil precisar tanto
sendo tão precisada.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Sinhazinha


Eu aprendi, no ensino primário, que os índios brasileiros foram perseguidos e mortos durante a colonização portuguesa. E que isso era muito triste. Depois aprendi que os escravos faziam um trabalho muito pesado, extenuante, com o objetivo de atender as necessidades do mercado europeu da época. Aprendi que eles viviam em condições desumanas, que eram tratados como mercadoria, como coisa, e que apanhavam de chicote. E que isso era muito triste.

Fiz escola primária na década de 1980, em uma cidadezinha do interior do Mato Grosso. Era a melhor escola da cidade, porque isso era um ponto de honra para meus pais. Mas não era uma escola construtivista-democrática-progressista-de esquerda. Era apenas uma escola pequena, simples e convencional, de uma cidade do sertão de um país autoritário que acabava de passar por 20 anos de ditadura. Os termos eram “índios” e “escravos”, não tínhamos ainda chegado a “populações indígenas” e “pessoas escravizadas”. Ninguém falou em nada sequer parecido com racismo estrutural ou direito dos povos à autodeterminação. Os horrores coloniais e escravistas eram um episódio superado de nossa história. Porém estava muito claro, sempre, sem dúvida alguma: eram horrores.

Certamente, falta refinamento histórico e sociológico aí. Mas já não parece tão pouco quando a gente lê que uma família achou cabível fantasiar uma menina de sinhazinha para comemorar seu aniversário de 15 anos sendo servida por pessoas negras no papel de seus escravos.

*****

Anos atrás estive na Martinica, ilha do Caribe que foi colônia e hoje é departamento da França, de população maciçamente negra constituída a partir do escravismo. Fomos fazer um passeio de barco que passava pelas “belezas da ilha” e por antigas propriedades coloniais. No mesmo barco, uma família francesa com um garoto de uns 10 anos. Em um certo ponto, ele pergunta o que são as argolas de ferro que ele vê chumbadas nas paredes de uma construção antiga. O guia responde que elas eram usadas para prender os escravos. O garoto fica confuso, tem dúvidas se entendeu direito. Era para prender os animais? Não, as pessoas. As pessoas escravizadas eram tratadas como animais, elas apanhavam e ficavam presas nas argolas.

O guia, negro, não panfletou, apenas respondeu às perguntas do garoto. A família, branca, não pediu que ele pegasse leve, apenas amparou com o olhar o espanto do garoto. Ele saiu chocado.

Deveria, porque é chocante. Não é tema para festa de aniversário.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Sensatez


Ela canta para a irmã:

- "Nana, nenê, que a Cuca vem pegar..." Não. "... que a Cuca não vem pegar. Papai foi trabalhar e a mamãe está aqui".

Olha pra mim:

- Como que a gente vai acalmar o nenê dizendo que a Cuca vem pegar e que todo mundo saiu?!