quarta-feira, 21 de março de 2018

Sinhazinha


Eu aprendi, no ensino primário, que os índios brasileiros foram perseguidos e mortos durante a colonização portuguesa. E que isso era muito triste. Depois aprendi que os escravos faziam um trabalho muito pesado, extenuante, com o objetivo de atender as necessidades do mercado europeu da época. Aprendi que eles viviam em condições desumanas, que eram tratados como mercadoria, como coisa, e que apanhavam de chicote. E que isso era muito triste.

Fiz escola primária na década de 1980, em uma cidadezinha do interior do Mato Grosso. Era a melhor escola da cidade, porque isso era um ponto de honra para meus pais. Mas não era uma escola construtivista-democrática-progressista-de esquerda. Era apenas uma escola pequena, simples e convencional, de uma cidade do sertão de um país autoritário que acabava de passar por 20 anos de ditadura. Os termos eram “índios” e “escravos”, não tínhamos ainda chegado a “populações indígenas” e “pessoas escravizadas”. Ninguém falou em nada sequer parecido com racismo estrutural ou direito dos povos à autodeterminação. Os horrores coloniais e escravistas eram um episódio superado de nossa história. Porém estava muito claro, sempre, sem dúvida alguma: eram horrores.

Certamente, falta refinamento histórico e sociológico aí. Mas já não parece tão pouco quando a gente lê que uma família achou cabível fantasiar uma menina de sinhazinha para comemorar seu aniversário de 15 anos sendo servida por pessoas negras no papel de seus escravos.

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Anos atrás estive na Martinica, ilha do Caribe que foi colônia e hoje é departamento da França, de população maciçamente negra constituída a partir do escravismo. Fomos fazer um passeio de barco que passava pelas “belezas da ilha” e por antigas propriedades coloniais. No mesmo barco, uma família francesa com um garoto de uns 10 anos. Em um certo ponto, ele pergunta o que são as argolas de ferro que ele vê chumbadas nas paredes de uma construção antiga. O guia responde que elas eram usadas para prender os escravos. O garoto fica confuso, tem dúvidas se entendeu direito. Era para prender os animais? Não, as pessoas. As pessoas escravizadas eram tratadas como animais, elas apanhavam e ficavam presas nas argolas.

O guia, negro, não panfletou, apenas respondeu às perguntas do garoto. A família, branca, não pediu que ele pegasse leve, apenas amparou com o olhar o espanto do garoto. Ele saiu chocado.

Deveria, porque é chocante. Não é tema para festa de aniversário.

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