domingo, 7 de dezembro de 2014

De olhos abertos


Eu não sou uma pessoa mística. Mas Teresa nasceu exatamente como eu imaginava: parecia que a menina tinha mandado seu anjo da anunciação carregando retrato. Cabelos escuros, olhos grandes e abertos. Muito abertos. E firmes. Nunca teve olhos de recém-nascido: já veio encarando o mundo de frente. (Vai ver conhecia o poema.)

Também nasceu de unhas compridas, a pele descamando. Uma enfermeira disse à minha mãe que era porque passou do tempo. Ela não passou de nada. Nada lhe passa.

Ficou sentada, ninguém sabe por quê. A despeito da yoga, a despeito da acupuntura, a despeito da tentativa de versão cefálica. Foi até o meio e voltou. Ficou sentada. Decidiu que eu teria de me haver com aquilo. (Não tinha eu também ficado sentada? Então...)

Não bastasse a posição pélvica, ela soube reivindicar o tempo que lhe era de direito. Às 39 semanas, rompi com a obstetra que me acompanhara e que decidiu, na terça-feira, que quinta era um dia conveniente para a cesárea. Em duas semanas, falei com mais médicos do que falara nos últimos dois anos. Às 41 semanas ela veio para o meu colo. Sem trabalho de parto. Na cesárea não planejada, desplanejada, replanejada.

Parece que a menina que me olha nos olhos e diz o que quer tem seus próprios planos.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Para falar de desmame


Teresa parou de mamar. Encerramos nossa amamentação.

Poderia dizer que desmamou (e desfraldou, aliás...). Mas eu detesto essas palavras. Não sei bem por quê. Neurose de mãe superprotetora que não quer que a filha saia de baixo das asas. Receio da ideia de estar tirando alguma coisa dela. Recusa em fazê-la objeto de um outro ser que lhe impõe uma falta, uma carência.

Ela conquistou seu desmame e seu desfralde. Não foi desmamada nem desfraldada. Ela está crescendo (preciso dizer que a menina cresce mais rápido que o tempo), e assim coisas novas podem entrar em sua vida, como a capacidade de comer de tudo, de dormir sem sugar, de ganhar o banheiro.

Daí que um dia, contando a uma amiga que minha filha não mamava mais, fiquei procurando uma frase para dizer em vez de “Foi um processo bem natural...” Ela ficou um pouco espantada com a minha recusa em relação à palavra “natural”, hoje tão frequentemente associada a apreciações positivas.

Dia desses li qualquer coisa em qualquer lugar sobre pesquisadores terem identificado comportamento homossexual em animais. A ideia era que esse é, portanto, um comportamento muito “natural”, logo não deveria causar escândalo que seja observado entre seres humanos. A classificação de “natural” legitima o ato. Se é natural, devemos respeitar, pois a natureza não é boa nem ruim (embora haja quem diga que ela é sábia), a natureza apenas é – e quem seria o insano a se rebelar contra aquilo que apenas é? Bem, a mim me parece que o comportamento homossexual entre seres humanos é legítimo não porque ele é da natureza, mas porque é da humanidade. Porque é uma realização do afeto e da sexualidade humana. Porque é um dos caminhos socialmente construídos para o estabelecimento de relações humanas, para a satisfação e crescimento mútuo dos envolvidos.

Seres humanos não são naturais. E o que dizer depois da desfaçatez de lançar assim uma frase categórica para cuja sustentação eu não tenho repertório filosófico? Nós temos fisiologia. Temos instintos. Mas conquistamos a capacidade de refletir de maneira inédita sobre nossa própria existência e sobre a alteridade. E sobre nossa fisiologia e nossos instintos. A individualidade iluminista e liberal instrumentalizada pelo mundo do dinheiro e do trabalho (cá estou eu metendo-me em filosofias que não conheço) alimenta uma atitude aparentemente libertadora de reivindicação do natural. Porque algo precisa se opor ao sufocamento do corpo, da fisiologia e do instinto sob a lógica da máquina e do relógio.

Mas essa oposição não pode ser a reivindicação do natural. O natural é aquilo que não somos mais, e já foi dito que a história só se repete como farsa. Se estamos para utopias, a minha é a do humano, não a do natural, a da realização plena do humano. Seja lá o que isso for.

(A expressão “parto natural humanizado” revela bem que o “seja lá o que isso for” é algo que ainda não sabemos bem o que é. Talvez a possibilidade de um atendimento à mulher que constitua de fato um caminho em direção a essa utopia seja algo tão inimaginável que ainda não se pôde nomear.)

E nessa mesma trilha vem o “desmame natural”, entendido como aquele que respeita os ritmos da mãe e da criança, que respeita as fisiologias e as necessidades mais íntimas daqueles dois seres.

Eu acredito que vivi o processo de amamentação da minha filha com a profundidade que a expressão “necessidades íntimas” sugere. O que ele me fez descobrir a respeito de mim mesma e o que me permitiu refletir sobre a relação entre pais e filhos foi impressionante, para mim. E o fim dessa amamentação se estabeleceu de maneira gradual, lenta, penso que respeitosa para nós duas e, até, prazerosa e divertida.

E isso não foi natural coisíssima nenhuma!

Foi construído. Foi construído pela persistência para que a amamentação se estabelecesse. Foi construído nos primeiros dias, quando ela não conseguia mamar e aceitou o leite ordenhado oferecido pelo pai. Foi construído naquelas mamadas doloridas. Foi construído naquelas mamadas prazerosas, de troca de olhares profundos. Foi construído quando fazíamos nosso mamá no sling, na yoga, no bar. Foi construído quando entendi que os infinitos despertares noturnos não eram bons para mim. Foi construído quando me irritei com a demanda que me parecia grande demais. Foi construído quando parei de interromper refeições e outras coisas importantes para amamentar. Foi construído quando entendemos que podíamos jantar e conversar juntas, e que isso também era gostoso. Foi construído quando percebemos que brincar na festa podia ser mais gostoso que mamar na festa. Foi construído em cada momento em que ela percebeu que se precisasse mesmo, poderia mamar no meio da noite, da refeição ou da festa. Foi construído em cada noite em que a amamentação era necessária para trazer o sono, e em cada noite em que dormimos cantando. Foi construído a cada vez que ela mamava um tiquinho, ria porque o leite tinha acabado e pedia o outro peito. Foi construído a cada noite em que contei a história da menina que não sabia comer e foi crescendo e agora sabia, e ela enumerava todas as coisas que já sabia comer. Foi construído até o último momento, quando nossa amamentação se encerrou quase que com uma gargalhada.

Isso não é natural. Precisamos de outra palavra. Isso é uma busca deliberada por autoconhecimento e disposição consciente para se ligar ao outro. Isso é humano.

Teresa parou de mamar. Encerramos nossa amamentação. Da última vez, ela tentou, começou a rir desabridamente e lançou “Não tem nada, né, mamãe? É porque o peito sabe que eu já sei comer.” Assim encerramos essa fase da nossa relação: juntas e rindo.

Que sejamos capazes de caminhar sempre assim, minha filha.

domingo, 2 de novembro de 2014

A criança e a palavra, ou por que menina também pode falar palavrão


Esses dias assisti a um vídeo de uma campanha sobre violência contra a mulher, em que meninas vestidas de princesa – com direito a cetim cor-de-rosa, tiara e purpurina – enchem a boca de palavrões, bem daqueles que a mamãe e a professora não deixam a gente falar, para lançar uma provocação: seriam esses palavrões mais chocantes, prejudiciais e ofensivos do que uns tantos outros que têm trânsito livre por aí, como desigualdade salarial, violência contra a mulher ou estupro? Para arrematar, um garoto também vestido de princesa entra em cena disparando gírias tipicamente masculinas, para esculhambar o tratamento que os homens dão às mulheres.

Não sei da efetividade da campanha, mas a pegadinha funciona: as pessoas ficam escandalizadas com a boca suja da criançada.

É impressionante como a sociedade é prescritiva em relação ao uso da língua. Há muitos anos, quando eu era professora de Língua Portuguesa, um colega, que atuava de maneira muito estreita com o movimento pela reforma agrária no Brasil, veio conversar comigo sobre sua vontade de criar um projeto para desenvolver as capacidades de comunicação e expressão dos trabalhadores rurais com quem ele militava. Ele se preocupava, como de costume, com o fato de que aquelas pessoas não dominavam a norma culta e isso as prejudicava de alguma forma. Emprestei-lhe um livro do Marcos Bagno, que eu adoro, chamado Preconceito linguístico, em que o autor discute e demonstra o quanto nossa apreciação sobre a “boa língua portuguesa” é preconceituosa e equivocada, e o quão político isso é (ler o livro é tarefa prazerosa para uma sentada, pois é curtinho e plenamente acessível a não linguistas). Isso mudou a perspectiva do meu colega a respeito do projeto que vislumbrava.

Esse preconceito tão amplamente arraigado em nossa sociedade é propagado de maneira sólida inclusive pela escola, instituição supostamente encarregada de ampliar nossas possibilidades de conhecer, questionar e produzir o mundo. Desde muito cedo, procuramos moldar a expressão linguística das crianças – indicando o que é certo e errado, feio e bonito, o que pode e não pode –, com o mesmo tom de quem difunde preceitos morais. Em minha opinião, fariam melhor os pais e a escola se procurassem proporcionar aos pequenos a experiência da complexidade da linguagem (já seria muito bom se não se esforçassem tanto para bloqueá-la, porque as crianças acham por si mesmas muitos caminhos para alcançá-la). São muitos os registros, os jargões, os dialetos; todos compõem a complexidade da língua; todos têm razão de ser; cada um deles que conhecemos acrescenta algo à nossa capacidade de expressão e de apreensão do mundo. Isso não significa que precisemos ou devamos abdicar do papel de mediação e até de proteção que o processo educativo implica – eu posso evitar que minha filha assista a cenas de sexo explícito na televisão, mas nem por isso vou dizer a ela que sexo é feio.

A literatura vive entre o poder e o limite da palavra. Toda uma legião de poetas românticos debateu-se com uma língua dilaceradoramente incapaz de dar voz a seu sentimento. Graciliano Ramos descobre em um de seus meninos o espanto e o temor de se deparar com o desconhecido, não só o ainda não visto, mas o inomeado: “Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas.” A criação e o aprisionamento são as prerrogativas contraditórias da palavra, entendeu a Joana de Lispector: “É curioso como não sei dizer quem sou [...] Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.” Guimarães Rosa viu tantas possibilidades na língua que lhe foi legada, que misturou tudo e fez outra.

E nós, pais e educadores, com a pretensão de estar bem formando o que virá, nos amesquinhamos apontando “feios” e “errados”... Considero aterrorizante que a nossa educação linguística – ou seja, a educação relacionada a uma prática social de tamanha amplitude e diversidade – tenha como referência e horizonte a definição e o domínio de um padrão muito restrito e uniforme, e a supressão e estigmatização de tudo o que não corresponde a ele.

Na ânsia de formatar o comportamento aceitável, criamos para as crianças uma prescrição altamente restritiva sobre o uso da língua. Criamos zonas proibidas da linguagem como criamos zonas proibidas do corpo: “Tira a mão daí”, “Não é assim que se fala”, “Não fala isso, que é feio!”. E ainda mais para as meninas. Em nosso imaginário e nossa prática marcados pela dominação masculina, do mesmo modo como a manipulação do próprio corpo é mais aceitável quando observada em meninos, a liberdade de manipulação da língua também é mais ampla para eles: o palavrão lhes cabe melhor (e o vídeo das meninas “boca suja” sabe disso, tanto que o garoto não fala palavrão – chocaria muito menos , mas adota ironicamente gírias e expressões tidas como masculinas). Meninas não correm, meninas não gritam, meninas não falam palavrão. Às mulheres cabe um espaço restrito, um corpo restrito, uma língua restrita.

A língua, prática social, criação permanente, coisa viva, alimenta-se daquilo que fomos capazes de forjar, e nos permite apreender o que há. Deusa de duas caras, oferece-nos os instrumentos e os obstáculos do instituído, e observa como nos saímos na extenuante-regozijante tarefa de dar forma ao vindouro, criar a criação. Não serei eu, como mãe, que abraçarei a tarefa de amesquinhar isso. Ou de ensinar a minha filha que seu direito a essa complexidade é menor que o de qualquer outra pessoa.

Eu não ensino a minha filha que menina não fala palavrão. Abraço a missão de ajudá-la a encontrar os meios para dizer tudo o que ela desejar.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Encontros


Teresa foi gestada por muito tempo.

Seu nome nasceu e ficou dez anos esperando que a menina nascesse (licença, Bandeira). Na verdade, mais. Era uma época em que eu ansiava por novos caminhos, mas achava que era tarde (tinha pouco mais de vinte anos: a velhice me chegou cedo ao coração...). Uma mulher muito cheia de vida despertou meu gosto por esses nomes um pouco velhos, dignos, que se renovam na pele daqueles que carregam alegria.

Hoje sei que não era tarde. Nunca é. Exceto quando já não nos toca, mas então não tem importância.

Aquele que seria meu companheiro dos caminhos mais bonitos ainda não estava lá. Mas já era sua aquela menina, pois quando falamos de nossas meninas elas logo se reconheceram.

domingo, 28 de setembro de 2014

Cultura pop


A terapeuta pede que eu faça uma colagem de recortes de revista representando a mulher que quero ser. Algo assim. Não consigo reter precisamente a proposta, porque não gosto dessas coisas e aceito meio que com preguiça.

Fico duas semanas enrolando para procurar as imagens, e nesse ínterim só penso que eu queria ser a Rita Lobo. Preciso rir de mim mesma, mas fazer o quê?... Penso naquela mulher linda, naquela desenvoltura, naquela casa fantástica, naquelas comidas sorrindo para as fotos, naquela louça que rescende a Oriente, bem ao lado de uma linda estante de livros impecavelmente organizada. Sou vulnerável ao personagem, impossível negar.

E minha filha também, ao que parece. Pede pra ver o programa repetidamente (coisas da televisão moderna: a gente pode ver o programa mil vezes...), decora frases, quer imitar o cabelo! Daí que um dia, enquanto ela assistia a um dos episódios e eu preparava o jantar, um trechinho de música de fundo daquela cozinha mágica me fisgou, achei linda e, influenciada pela receita de ares marroquinos que a mulher preparava, achei até que a canção tinha toques das Arábias.

No dia seguinte, lanço para o marido (que, diga-se de passagem, implica com os cuidados e caprichos da cozinheira invejada):

– Tocou uma música tão linda no programa da Rita Lobo – vê se você conhece e me ajuda a achar na internet? – e já vou colocando o programa pra rodar e ele ouvir o trecho. Enquanto ouço a música com atenção, num volume mais alto, vou percebendo uma vaga familiaridade: – Ué... mas é o Caetano? Que música linda essa do Caetano...

Marido quieto. Marido lança, com algum desprezo na voz:

– Coloca “Jokerman” no Google. Isso é um clássico do Bob Dylan.

– Ahhh...

Procuro a música, ouço o Caetano, ouço o Dylan, saltito aqui e ali descobrindo a história da canção, de Dylan e do álbum, leio opiniões engraçadas de gente que escreve blogs para discutir suas interpretações de canções, poemas e afins. E mando minha opinião abalizada:

– Amor, gostei mais da do Caetano.

Desta vez, nenhuma resposta, e um olhar de desprezo um pouco mais profundo.

*****

Ainda não sei muito sobre a mulher que quero ser, mas quanto à mulher que eu sou, parece que o forte dela não é mesmo cultura pop.

*****

Me consolo com a história de um amigo que só depois de casado foi “descobrir”, pela mulher, que o Jimi Hendrix era negro.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Noite


Às sextas-feiras, é particularmente difícil.
Normalmente não é fácil, mas às sextas-feiras é particularmente difícil.
Hoje foi terrível.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Resenha


Ela escreveu o livro que eu queria escrever. Não pela temática, que pode parecer óbvio. Pelo ritmo. Nunca imaginei que o livro que eu queria escrever tinha aquele ritmo.

domingo, 10 de agosto de 2014

Tradição


Vai ver que também sou tradicional. Caipirinha boa mesmo é açúcar, gelo, limão e cachaça. Essa história de morango e saquê pode até ser bom, mas, cá entre nós, é meio sonsa... (E quando o garçom pergunta se você quer com adoçante? Não consigo não dar risada...)

Mas bem que tudo pode ser melhorado: as caipirinhas aqui da praia despertaram minha vontade de voltar ao Dita Cabrita para tomar a caipirinha que vem com um pauzinho de cana como mexedor, ah que delícia...

Moral da história: já estou com saudade de casa...

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Doçura mineira


Na quarta placa anunciando o tradicional e legítimo rocambole de Lagoa Dourada, ele começou a ficar inquieto. Que prazer inesperado: sem planejar, estávamos atravessando a capital brasileira do rocambole! E as placas não cessavam - propaganda é tudo. Claro que ele parou e comprou um tradicional e legítimo rocambole de Lagoa Dourada, enorme, entregue pelas mãos da própria confeiteira, que faz apenas seis deles por dia, realmente artesanais - não é como esses das grandes padarias que fazem dezenas de rocamboles diários, sem personalidade, para vender aos ônibus de excursão (isso mesmo: ônibus de excursão param em Lagoa Dourada para que os turistas comprem rocamboles). De goiabada, que ele é um homem tradicional, como o rocambole. Nada de chocolate e baunilha.

Quando chegamos a Belo Horizonte, na casa dos nossos amigos, o rocambole foi devorado em instantes por todo mundo, menos eu, que achei que o quitute tinha muito gosto de, bem, de açúcar... Afinal, era uma massa doce, recheada com uma geleia doce, e recoberta por uma camada de açúcar peneirado.

Agora, olha essa em Tiradentes. Hora de almoço. Entramos num café modernete eco-natureba-gourmet. Ali me serviram uma saladinha de cevada que foi uma das coisas mais bem temperadas que já provei na vida. Peço uma água com limão espremido e gelo, já que uma cerveja me desmontaria pelo resto da tarde e o calor e a ladeira bem combinavam com um limãozinho refrescante. Vem um copo lindo, de vidro grosso colorido, com um cheiro enjoado. Bebo, e nada da refrescância do limão. Peço mais limão. Piora. Demoro séculos para entender que não me trouxeram limão espremido, mas um xarope de limão cheeeeio de açúcar! Pode?!

Mas devo dizer que o café tem sido sempre bom, e pelo menos até agora ninguém me ofereceu café adoçado...

terça-feira, 22 de julho de 2014

Trabalheira


E se a gente nunca precisasse atualizar o Java?
E o pneu nunca furasse, e o esmalte não descascasse?
Nunca a torneira pingando, e todos os interruptores funcionando.
O ônibus não demoraria, e nunca fila na padaria.
E todas as calorias queimassem, e só o salário engordasse.
Enfiar o pé na jaca, e jamais uma ressaca!
A cama muito grande, pra espalhar a família inteira.
Tempo de sobra e muito espaço, e um vasinho no terraço.
Champanhe e tiramisu, de preferência pra comer nu.
Sem ruga na testa, nem pulga atrás da orelha,
fazer só o que der na telha.
Então...
Aaaai que trabalho que dava
olhar pra dentro da gente
e descobrir o que incomodava...

terça-feira, 3 de junho de 2014

Culpa de quem?


Como eu sou uma moça de classe média, tenho indignações típicas de classe média. E, como é de conhecimento geral, a classe média sofre que se estrebucha.

Por exemplo, durante o Grande Calor Escaldante de 2014, como ficou conhecido aqui em casa o evento climático que me enlouqueceu em janeiro e fevereiro deste belo ano, eu queria desesperadamente alguém para culpar - afinal eu sou uma cidadã de bem, cumpridora dos meus deveres, com impostos e crediário em dia, então como assim eu ia passar aquele incomensurável aborrecimento sem processar ninguém? Sem pedir nenhuma indenização? Xingar nenhum político? Nem um vizinho? Nadinha?... Bem, elegi o shopping como meu quintal com ar-condicionado e para lá ia todas as noites, reclamar que nem o ar-condicionado do shopping estava dando conta... Alguém tem que dar um jeito nisso, ora essa!

Agora, imagina que a pessoa aqui ganhou uma linda cafeteira e resolveu fazer um "cantinho do café" na sua mesa de trabalho. Mesa de trabalho e de todo o resto: desenhar com giz de cera (na mesa mesmo, não no papel sobre a mesa, certo?), espalhar todas as cápsulas de café e guardá-las novamente (12 vezes), assistir a incontáveis vídeos do "passarinho, que som é esse?" no YouTube, e por aí vai. Então. A latinha com açúcar é meticulosamente guardada no alto todas as vezes. Todas as vezes. Menos quando a pequerrucha senta sozinha pedindo pra ver o dito passarinho e a mãe agilmente liga o play e corre para a cozinha a fim de aproveitar os momentos de quietude - de repente, muita quietude - e fazer o jantar...

Imaginaram a criança e todo o seu entorno empanados em açúcar? O tapete? A cadeira estofada? Mascavo, gente...

Deve ser culpa de alguém. Do passarinho, talvez. Minha que não é...

sexta-feira, 23 de maio de 2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

A delicadeza é azul. Ou cor-de-rosa-choque


Depois que tive minha filha, minha casa passou alguns meses praticamente sob a luz de um abajur da sala, coberto com um lenço lilás para quebrar a luminosidade. Na época influenciada pela ideia da exterogestação, hoje acho que muito daquela penumbra era para mim. As luzes e o volume da TV aqui em casa nunca mais foram os mesmos. E eu tão reconhecidamente estabanada ando ligeiramente fascinada pelos gestos calmos e precisos de meu marido e minha filha. Ando fascinada pela delicadeza.

Os clichês são uma desgraça. Eles ajudam a organizar a nossa compreensão do mundo, mas depois dá um trabalho desconstruir tudo... É que a delicadeza não precisa ser bem assim penumbra e tons pastel. Eu tenho uma tia que é um furacão de alegria, vibrante, bem-humorada, espalhada. E uma delicadeza. Não deve ser à toa que tenho pensado muito nela.

Recentemente virei fã de uma série de época inglesa, daquelas em que todos escolhem cada palavra, numa ginástica entre protocolo e circunstância, para se portar apropriadamente no trato com cada pessoa de cada nível social. Um pesadelo de hipocrisia, submissão e artificialidade? É... Há um certo tempo eu diria somente isso. Mas hoje tem alguma coisa ali que me atrai. A ideia de que é necessário avaliar o que se diz às pessoas, de que as coisas devem ser ditas de modo apropriado, de que há uma certa linha de contenção a ser respeitada, isso tem me interessado. (Talvez seja algo que a gente desenvolve após passar meses ouvindo cada ser humano conhecido e desconhecido te dizer se você devia ou não dar chupeta à sua filha.)

J’aime la politesse?... Evidente que esse tipo de relação protocolar se instaura para a manutenção do status quo, e não pelo respeito ao ser humano. E eu gosto das relações quentes e francas, não das frias e cifradas. No entanto... No entanto deveríamos pensar se o que vamos dizer ou fazer aos outros despertará um sorriso, trará um bem, suscitará beleza, proporcionará descobertas, subirá aos céus, culminará na revolução. Ou então, talvez possa esperar.

Estou lendo Carl Rogers, um psicólogo cujo livro me caiu nas mãos e seria uma história comprida explicar por que me interessei por ler. Acabei não lendo psicólogos na vida. De Freud alguma coisa há uma década. Da linguística na faculdade de Letras, Lacan virou fumaça no fundo do meu cérebro, e o Chomsky nem era psicólogo, ou era? Bom, estou lendo este. E ainda não achei nada muito interessante do ponto de vista da compreensão radical, crítica ou social do ser humano. O sujeito está interessado em descobrir como se estabelecem relações de ajuda, e se e como a terapia funciona. Ele acha que funciona. E que funciona pela aceitação. Que ao terapeuta cabe aceitar o cliente (ele diz cliente), o qual acaba por aceitar-se em suas múltiplas faces não congruentes, e assim permite-se ser, e em sendo se transforma. Muito autoajuda?... Meio hippie?... Estou gostando. Tem feito sentido neste momento da minha vida.

Talvez esteja aí a delicadeza: ser precariamente, deixar ser precariamente, porque a plenitude só está no horizonte, mas pelo menos está lá.

E porque há quem fale de delicadeza muito melhor do que eu:


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014