domingo, 26 de novembro de 2017

Realismo fantástico


“De cuando en cuando me ocurre vomitar un conejito.
No es razón para no vivir en cualquier casa,
no es razón para que uno tenga que avergonzarse y estar aislado y andar callándose.”
(Cortázar)


No dia em que sua irmã nasceu, minha filha cresceu espantosamente, de um dia para o outro.

Não me entenda mal, não falo em termos metafóricos. Não estou dizendo que ela se tornou mais sábia ou mais madura. Ela ficou maior. Cresceu vinte centímetros de um dia para o outro. Suas mãos ficaram enormes, a ponto de segurar toda uma cabeça de bebê. Suas unhas, que eu cortara alguns dias antes, ocupam o dobro do espaço em cada dedo. Seu rosto mudou, para acompanhar o crescimento do corpo. As pernas estão longas e fortes. Os braços ganharam uma nova robustez. As roupas não servem mais. Bastou um dia.

Eu costumava carregá-la no colo quando chegávamos da rua cansadas, mesmo com cinco anos de idade. Com a gestação, quase foi ela a me carregar, eu sempre a mais cansada da dupla. Combinamos que a seguraria no colo sempre que ela quisesse, desde que eu estivesse sentada. Não imaginava que ao fim de nove meses ela estaria imensa como o futuro, que não seria mais a menininha no meu colo.

Da primeira vez, entendi que a gente não se despede o suficiente de si mesmo antes da chegada do filho. É preciso despedir-se, entendemos somente depois.

Mais uma vez, entendi somente depois.

sábado, 21 de outubro de 2017

Amor


Saio da sala de exame e minha filha vai correndo para a área de café e biscoitos, como sempre. Ela e meu marido sentam, e eu paro na máquina de café.

Enquanto espero o trabalho da máquina, um homem puxa papo com eles, e tenho tempo de ouvir a seguinte reflexão do novo amigo:

- Eu não sei cozinhar, não sei lavar, não sei limpar. Então preciso ter uma mulher, né. Uma mulher ou uma empregada...

Meu marido, sorrindo, responde:

- Ou aprender, né?

E para mim, também sorrindo:

- Você não quer esperar o laudo lá dentro?

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Por conta própria


Eu fazendo a unha e no salão uma menininha de quase dois anos. Os adultos em volta,  falando as costumeiras coisas lamentáveis que os adultos falam para as menininhas. Até que:

- E você adorou a princesa que ia casar com o príncipe?

- Não. Eu gostei da bruxa.

Apesar de tudo, sabe-se lá como, as crianças se salvam.

sábado, 30 de setembro de 2017

Confiança


Para quem está genuinamente preocupado em educar as crianças de modo que elas se tornem seres humanos menos vulneráveis a situações de abuso, especialmente abusos sexuais, me ocorrem várias estratégias que pode ser útil considerar.

Por exemplo, quando uma criança se recusar a comer, respeite sua recusa. Assim ela vai aprender uma lição absolutamente fundamental: que ela pode escolher o que entra ou não entra no seu próprio corpo, e que ninguém tem o direito de colocar nada nele à sua revelia.

Quando ela não quiser beijar a vovó ou aceitar o beijo da titia, receba isso com naturalidade. Caso contrário, ela pode entender que existem pessoas a quem ela está proibida de negar intimidade ou interações corporais. (E é bom jamais esquecer que a esmagadora maioria dos casos de abuso e violência é cometida por pessoas conhecidas, frequentemente muito próximas, portanto a máxima de não falar com estranhos serve para bem pouca coisa).

Quando você cometer uma injustiça com ela, e perceber isso, peça desculpas e converse. Talvez assim ela entenda que não existe autoridade absoluta, e que se ela sentir que o professor ou o padre a estão tratando de modo indevido, pode ser que eles estejam mesmo.

Quando ela se queixar de qualquer coisa, ouça com atenção e acredite que é verdadeiro e importante. Quando ela fizer o que não deve, corrija com respeito. Só assim ela vai entender que existe um espaço de confiança e acolhimento no qual ela pode se expor.

Permita que a criança observe e viva experiências normais e saudáveis relacionadas à nudez e às interações corporais. A mãe atravessando a casa pelada pra ir pegar uma fatia de mamão na geladeira e que no caminho ganha um abraço me parece uma cena de nudez saudável. Já uma propaganda de bebida (ou de móveis) exibindo uma desconexa moça de biquíni, não. Isso sim é uma nudez indecente.

Assim como me parece indecente ensinar às crianças que a interação entre corpos, nus ou não, é algo obsceno.

Sabemos que abuso não tem a ver com interação corporal ou com sexo, tem a ver com submissão, com exercício de poder. E as crianças são educadas ouvindo que ser uma boa criança é submeter-se, é ser boazinha e fazer o que lhe pedem, o que lhe mandam. Isso sim é criar uma pessoa vulnerável ao abuso.

Não vamos ensinar as crianças a serem fortes e confiantes plantando nelas a desconfiança de que em seus próprios corpos existe uma sujeira latente que pode ser descoberta por adultos doentes. Acredito que ensinar a soberania e a beleza inerentes a todo ser, a todo corpo, é algo muito mais eficaz.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Abraçada a uma árvore


Qual o aspecto mais difícil e desgastante da gravidez? O sono? Os enjoos? O peso? As dores nas costas? Nada disso. A parte mais cansativa da gravidez é o pré-natal...

Pré-natal significa que todo mês você tem pelo menos uma consulta e um pedido de exame para resolver. Consulta significa arranjar um horário na agenda que, idealmente, permita reunir eu, a médica e o marido, durante o horário de escola da filha mais velha, interferindo o mínimo possível no nosso horário de trabalho. Todo mês. Nos últimos meses, duas vezes por mês.

Mas não é nada comparado aos exames. Eu tenho o privilégio de um plano de saúde privado com uma cobertura bem razoável, e mesmo assim nunca tem horário... "Senhora, nesse sábado nós temos horário às 7 e 20 da manhã, na unidade do Tatuapé, pode ser?"... Ó, Jesus, eu moro no Butantã... E os termos "sábado" e "7 e 20 da manhã" não deveriam nunca coexistir em uma frase. E tem os exames de sangue com jejum, o nojento de glicemia, e eu já fiz xixi no copinho umas 60 vezes este ano...

Na gestação anterior, eu já havia ficado bastante de saco cheio do pré-natal. Fui acompanhada por uma médica bem convencional, com a qual acabei rompendo no final da gravidez, porque quis me empurrar a agenda de cesárea dela. Desta vez, consegui escolher uma médica com práticas mais próximas do que eu acredito ser importante, inserida no que se tem chamado de obstetrícia humanizada. Então tinha esperanças de um pré-natal mais leve, afinal esse pessoal não são aqueles médicos hippies que receitam chá e "deixam" a mulher parir abraçada a uma árvore? Pois acontece que o pré-natal da danada tem sido ainda mais meticuloso do que o primeiro...

Tudo isso pra dizer o seguinte: por que um atendimento tão "médico", tão "normal", tão dentro dos protocolos, que se baseia em parâmetros estabelecidos pela própria comunidade médica, que recorre aos mesmos exames de qualquer pré-natal etc., por que essa conduta causa tanta desconfiança nas pessoas em geral e manifestações tão ácidas de uma parte dos profissionais de saúde? Não é possível entender isso sem falar em autoritarismo e misoginia, simplesmente não faz sentido.

No fundo, o que torna a "obstetrícia humanizada" intolerável é o fato de que ela não submete a mulher. E isso, isso não pode.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Puericultura situacionista?


Não é possível falar em "falta de limites" quando vivemos sob o inexorável limite da vida transmutada em sobrevivência.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Rotinas, roteiros, percursos


Eu não tenho provas, mas tenho convicção de que a máxima "criança precisa de rotina" é falaciosa. Ou, pelo menos, ela precisa ser relativizada e tratada de uma maneira mais complexa do que habitualmente se encontra nos guias e dicas sobre educar crianças.

Acredito que as crianças – assim como nós, aliás, em alguma medida – precisam de pontos de referência, precisam de relações humanas quentes, precisam de tempo e liberdade para contemplar o mundo e a si mesmas e se espantar com a imensidão. Precisam que a vida seja recheada de sentido, e não ter sua existência tragada por esse vazio árido que nos ronda.

E nada me convence de que isso se traduz em dormir e acordar no mesmo horário, nem em fazer todas as refeições com cinco cores no prato. É que isso é mais fácil de prescrever. Não é a rotina que garante isso, é alguma coisa bem mais difícil de operacionalizar, são as relações verdadeiras com o mundo, com os outros seres humanos, consigo mesma. Talvez o que rotina faça seja garantir alguma segurança diante da ausência ou da precariedade de todo o resto.

Claro que eu posso estar completamente errada.

sábado, 20 de maio de 2017

O poder do marketing - e da falta de horizontes


Estamos na cozinha, arrumando a louça e brincando de adivinhação:

- Mamãe, é uma palavra que começa com "la".

Respondo a primeira coisa que me vem à cabeça:

- "Lá, lá, lá, Brizola..."

Errei. Era "laranja".

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

De príncipes e princesas, ou: Diferentes narrativas da concepção humana - explorando a noção de neutralidade da ciência


Hoje assisti, em algum lugar da Internet, a um vídeo mostrando o desenvolvimento de uma gestação humana por dentro do corpo da mulher. Nada de novo sob o céu, mas eu gosto, acho divertido ver esses vídeos sobre “maravilhas da natureza” que poderiam passar no Fantástico com narração de Cid Moreira (acho que faz um tempo que não vejo o Fantástico).

Ele seguia o roteiro de todos os vídeos, animações, desenhos etc. que me lembro de ter visto sobre esse processo: a aventura começa quando o intrépido batalhão de espermatozoides (que lamentavelmente perderam parte de sua dignidade junto com o acento agudo) lança-se rumo ao desconhecido, navegando à velocidade da luz por mares bravios, até que apenas o mais corajoso, o mais veloz, o mais resistente, o primeiro a atravessar incólume essa galáxia de possibilidades terríveis que é o interior do corpo feminino, apenas ele – o escolhido – atinge o óvulo, com sua barreira até então intransponível, mas que, diante de cavaleiro tão cheio de predicados, de guerreiro tão vistoso tão temido e poderoso, finalmente se abre para a consumação do milagre da vida! Dizem até que eles foram felizes para sempre.

Ocorre que a aventura começa antes, não? Pois prepare o seu coração, porque agora vamos, por essa selva escura e desvairada, acompanhar a incrível jornada do óvulo (que, aliás, soube manter seu acento e sua dignidade).

A história de nosso herói começa há muito tempo: ele é a vida dentro de cada nova vida, o primeiro lampejo do rebento vindouro. Tendo sempre vivido entre os seus, no lugar em que tudo lhe era conhecido, em que tudo lhe era afável, quando a missão o chama, no momento exato em que é instado a cumpri-la, nosso herói despede-se sem hesitar de sua aldeia, e lança-se, com coragem e precisão, através do desconhecido. Com a sabedoria ancestral que lhe é inerente, segue a trilha dos que o precederam em busca do local exato, do momento preciso. Ele sabe que há apenas um lapso de tempo em que a profecia pode se cumprir. E sabe que cabe a ele, e somente a ele – o escolhido –, encontrar esse portal mágico do tempo e do espaço, para que o guerreiro não pereça em sua corrida cega. Após longos dias de viagem, encarando o risco da morte, atormentado pelo temor da vacuidade de sua existência, ainda assim ele segue impávido rumo a seu destino. Alcança o local predestinado. É ali. O local preciso. O momento exato. Ele é o escolhido. Em sua sabedoria inata, sopra nos ouvidos incautos do viajante veloz os sinais que o colocam na trilha correta. Até que finalmente pode abrir suas membranas, liberar suas abundantes enzimas. Os céus se movem: transforma-se em vida o vaticínio ancestral.

(Quem diria que o óvulo não era só um bobo ali esperando. E os cometinhas, vamos lá que são rapidões, mas a bem da verdade às vezes eles nem sabem onde estão batendo a cabeça...)

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Abraço o que existe


Eu descobri o medo de minha mãe em mim.

E ao descobri-lo, descobri a força de minha mãe em mim.

E de toda uma teia de mulheres que seguiram em frente sabe lá deus como.

Sabemos nós como.

(Em cada uma de nós existe uma teia de mulheres que vale a pena descobrir.)