quarta-feira, 26 de junho de 2013

Deixa chorar


Caro Baudelaire, não são apenas as cidades que mudam mais rápido que o coração de um mortal: os filhos também... Obsolescência programada: suas habilidades, capacidades, demandas, tudo muda tão rapidamente, que nosso equipamento precisa de upgrade todo mês, toda semana, todo dia! Eu não dou conta: fico pra trás. Imensurável o meu espanto na primeira vez que Teresa levantou a tampa do lixo do banheiro para eu colocar a fralda suja dentro - pode isso?! Então começo a entender melhor a ideia de que as mães facilmente podem se tornar superprotetoras e tolher seus filhos: é que seus avanços nos surpreendem, e a ficha às vezes demora a cair.

Esses tempos andou me caindo a ficha de que Teresa já pode esperar. Já consegue lidar com a impossibilidade de ter o que quer, na hora em que quer. Já pode ajudar. Já pode atender alguns pedidos, em vez de apenas pedir. Bonito... Mas às vezes desanda: não quer esperar, quer agora e já, e aí irrompe o choro gritado, de propósito. Calculado, diriam os partidários do pensamento de que as crianças são serezinhos manipuladores.

Nessas, comecei a matutar sobre a questão do choro.

Nas últimas semanas apareceu um outro choro, relativamente inédito: o de que nada está bom. Andou doentinha, coitada, e tinha uns momentos de chorar de qualquer jeito, por qualquer coisa, irritada, chorar no colo, chorar no peito. Minha filha não teve cólicas e esses episódios de choro intratável foram sempre raríssimos aqui em casa.

Quando comecei a enveredar pelo assunto bebês e criação de filhos, descobri os métodos de treinamento de choro controlado para "ensinar o bebê a dormir sozinho": deixe o bebê chorando, que uma hora ele para, senão fica mimado. Nunca me agradei da coisa, e então descobri os detratores do método, reunidos sob o lema "Não deixe seu bebê chorando". Claro que não, oras... E assim a expressão "deixar chorar" cristalizou-se em mim unicamente com o significado de "abandonar ao próprio sofrimento".

Mas eis que por esses dias me dei conta de que ela também pode significar "permitir que chore". E entendi que precisamos permitir a nossos filhos que chorem. Porque chorar também é preciso. E legítimo. Porque a banana não amadurece quando temos fome e isso nos frustra contra o universo. Porque a mamãe precisa terminar o jantar antes de amamentar e isso revela os limites da relação simbiótica. Porque a garganta dói e o corpo amolece e tudo então é horrível. E chorar é nosso primeiro recurso para lidar com a frustração e a dor.

Nesta sociedade em que precisamos estar sempre bonitos e felizes, transpirando sucesso, nos é vedado chorar. Desde cedo: "engole o choro". E se desde cedo engolimos o choro, ou trapaceamos com ele, calando-o com um brinquedo ou um chocolate, como vamos sofisticar nossos recursos emocionais para lidar com a frustração e a dor?

Portanto, a partir de agora, deixo chorar. Se preciso for, choramos juntas.

domingo, 23 de junho de 2013

Perfeição


Hoje, no banho, Teresa resolveu ficar em pé dentro do balde enquanto ele enchia. Quando sentou, um montão de água transbordou e foi pelo ralo, e ela se acomodou feliz, submergindo até os ombros em água morna. E eu, Arquimedes que me perdoe, tive um momento eureka: a água de um banho de imersão é a realização do perfeito! A água necessária é exatamente a que cabe, nem mais nem menos. A água suficiente é exatamente a que cabe, nem mais nem menos.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Estatuto do nascituro


Apesar de eu desconfiar enormemente da ideia de progresso, de mudanças progressistas, como se pudesse haver na sociedade evoluções lineares e isentas da contradição, não consigo deixar de pensar nesse estatuto como uma aberração e um "passo atrás", um retrocesso.

Em vez de seguirmos em direção à descriminalização do aborto, do aborto como escolha da mulher – uma escolha pesada e cujo ônus ela própria carregará por toda a vida –, estamos a um passo de criminalizar mulheres estupradas que se recusem a perpetuar a violência sofrida gerando em seu próprio corpo o filho de seu agressor; mulheres doentes que façam a excruciante escolha de salvar sua vida em detrimento da do feto que carregam em seu ventre; mulheres que passaram pela já dolorosíssima experiência de sofrer um aborto espontâneo.

Este é um país laico. Nós, que de maneira geral vivemos sob os valores e as circunstâncias do mundo ocidental contemporâneo, costumamos ter muito pouca dificuldade em olhar para as sociedades muçulmanas teocráticas, por exemplo, e dizer “Que absurdo!”, “Que atraso!” Muito bem, se é ponto pacífico que não queremos uma sociedade teocrática, então nossas crenças pessoais de âmbito religioso não interessam à discussão. Não cabem. Simples assim. Cada um leva a sua vida particular de acordo com suas crenças particulares. Elas não entram na arena pública.

Mas talvez o mais insuportável para mim seja a facilidade com que discussões delicadas como essa descambam para o moralismo. Do mesmo modo como a moça bonita de saia curta não é levada a sério quando denuncia um estupro, as vozes guiadas pela lógica da culpa e do pecado logo se levantam para marcar com o mais pesado estigma a mulher que opta pelo aborto: "Em caso de estupro posso até pensar no assunto, mas por simples escolha não – não foi bom fazer? agora cria!"...

E assim, do mesmo modo como exigimos das crianças uma retidão moral e de comportamento que nós adultos estamos longe de exibir, colocamos sobre os ombros das mulheres toda a punição pelo sexo pecado que ainda habita nossas mentes e corpos. Porque na sociedade machista e patriarcal em que vivemos, o filho desejado, sobretudo o varão, é orgulho do pai; mas o filho não planejado, não desejado – não tenhamos a menor dúvida! – é problema da mãe.


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Segurança


Chegamos eu e ela para a adaptação. Ela me dá a mão para descer os degraus e vamos pacientemente, um por um, juntas. Nos tropeços, me olha com cumplicidade e achando divertido. Já sabe fazer caras e bocas, é possível? Lá embaixo, não larga minha mão e sai andando, como de costume: segura com uma firmeza inédita, para e olha em volta. Já tinha ido comigo e o pai no dia da visita, mas se comporta de um modo novo. A monitora se aproxima e tenta pegar sua mão, ela não deixa. Vamos andando juntas. Ainda segurando minha mão, aceita também a da monitora. A escola é linda, e nos dirigimos ao parque de areia pelos caminhos alegrados pelo sol e as plantas. A coordenadora se aproxima para dar as boas-vindas. Então ela solta minha mão, segue com a monitora para ver os brinquedos no parque. E depois as galinhas, e as árvores, e já não sei mais o quê, porque já não as vejo. Saco meu livrinho e fico em um banco, na sombra. É um lindo dia de sol.

Quando voltam, vamos para sua sala, onde ela encontra uma almofadinha igual à que uso de apoio para amamentá-la em casa. Vem me entregar a almofada e uma boneca, e logo se entretém com a tomada. E com a varanda. E com as outras crianças que chegam. E a monitora a convida a se reunir no parque com os coleguinhas que começam a se concentrar por ali. Olho minha menina pela janela. Hoje está de roupa de criança, não de bebê. Sai toda firme e tranquila com sua jaqueta de moletom e as botininhas novas dadas pelos avós. Os olhos marejam vendo-a de costas, afastando-se de mim a passos seguros, em direção a tanta coisa nova.

Me lembro de uma frase que adoro, do filme Encontrando Forrester. Ao vencer um concurso literário com um texto nascido de um exercício de redação proposto pelo escritor recluso que se tornara seu mentor, um rapaz é acusado de plágio. Em sua defesa, o escritor surge para dizer que não, não há plágio: ele apenas cedeu suas palavras para que o rapaz pudesse encontrar as dele.

Meu amor, encontre suas palavras, estarei esperando para ouvi-las.

domingo, 2 de junho de 2013

Sentir / sair


De vez em quando tenho umas vontades de mudar tudo, assumir uma vida inteiramente diferente. Aprender inglês em São Francisco. Pintar o cabelo de azul. Estudar biologia. Arranjar um emprego nove-às-seis. Mudar os amigos. Morar dois anos em Buenos Aires. Trocar o apartamento por uma casa no mato. A verdade é que na maioria das vezes acabo apenas cortando o cabelo e mudando a cor das almofadas...

Sempre vi essas vontades como problema de uma personalidade volúvel – sou de fase. Meu pai cedo entendeu isso em mim, que a grande dor da escolha não é o que a gente pega, mas aquilo que a gente deixa, então vou querendo um pouquinho de tudo aqui e ali. E me dizia que pedra que rola não cria limo. Ele tem uns ditados engraçadíssimos, meu pai, mas, francamente, essa metáfora não convence ninguém: quem quer criar limo?!

No exercício de tentar ser mais generosa comigo mesma, há algum tempo resolvi aceitar que de vez em quando preciso da mudança. Decidi enxergar a coisa pelo prisma do fato, não do defeito. Preciso, me traz vitalidade. Tem gente que precisa saber que o sofá estará sempre ali esperando por ela. Eu preciso saber que posso mudar o sofá se me der na telha, senão me sufoco com aquele sofá sempre ali, sempre igual. E afinal, o que há de errado se somente hoje eu fui perceber que o sofá fica muito melhor do outro lado da sala?...

A capacidade de se desfazer do que não serve mais me parece muito sábia. Integridade, estabilidade, equilíbrio, tudo bonito, mas passou do ponto vira estagnação, evolui para o sectarismo. O maduro não floresce mais. Claro que é gostoso ir ficando por ali onde tudo dá certo, mas a vida costuma providenciar umas desacomodações pra gente se sacudir de vez em quando. Coisa boa, que desconcerta.

Descobri que ter um filho é isto: uma série de grandes e pequenas desacomodações. Um bebê em casa dá uma nova perspectiva sobre a mudança: ela acontece todo dia, na sua frente e dentro de você. Coisa impressionante. Difícil de acompanhar. Daí que ando obcecada com as ideias de tempo e movimento. Na verdade, é bem óbvio e piegas: tudo está no movimento, e cada coisa tem seu tempo; o drama seria bem menor se nos deixássemos – e nos deixassem – à vontade para acompanhar o movimento, viver o tempo de cada coisa, de cada um. Um desafio, do superego à superestrutura...

O tempo de cada um. Quando Teresa nasceu, eu tinha ódio das piadinhas e comentários sobre separação, essa coisa das pessoas dizerem que você precisa ser menos agarrada com seu filho. Aliás, quem não sabia, fique sabendo: não é engraçado nem fofinho dizer à mãe de um recém-nascido “Que bebê lindo, vou pegar pra mim!” Não vai nããão!, ruge a leoa cá dentro. Eu tinha uma genuína vontade de ficar quase o tempo todo com minha filha, no meu campo de visão, no meu colo, dormir com ela, pode botar lá dentro de novo, por favor?

Aos poucos, a vontade de separação aparece. Se não houvesse especialistas para definir quando ela deve aparecer, se não fossem tantas as imposições externas, padronizadas, burocráticas e preconceituosas sobre o que e quando devemos sentir, talvez desconfiássemos menos de nosso desejo de proximidade e de nossa vontade de separação, talvez fosse mais fácil acreditar na intuição e não deslegitimar o que sentimos e queremos.

Assim, um belo dia me dei conta de que precisava reaver meu tempo sozinha. Para trabalhar, que é o mais premente, mas para tantas outras coisas e também para coisa alguma. Fiquei aflita e, confesso, um pouco decepcionada comigo mesma quando percebi que mandaria minha filha para a escola bem mais cedo do que eu imaginava. Cheia de culpa. Não faltam especialistas e enxeridos para dizer que seu filho vai ser uma pessoa muito mais interessante quanto mais cedo (cedo mesmo) sair da barra da sua saia. Nem para dizer exatamente o oposto: se a criança for para a escola antes dos quatro anos o cérebro dela vai se encher de cortisol e ela será irremediavelmente infeliz, para sempre. Suspiro...

Uma solução de transição foi contratar uma pessoa para passar algumas horas com minha filha, em casa mesmo, brincar, dar atenção a ela, para que eu pudesse dar atenção a outras coisas. E isso permitiu que aos poucos eu fosse me dando conta das minhas necessidades e limites. Comecei a observar a vida alinhavada numa sucessão de movimentos de aproximação e afastamento, contração e expulsão, fusão e separação. Volto à história das mudanças e do respeito aos tempos íntimos. A vontade de mudar como uma reação ao mergulho naquilo que já deu o que tinha pra dar. Creio que minha constituição como mãe e pessoa precisava passar pelo momento da mistura com minha filha, e mesmo sem saber fui criando situações para ter o tempo necessário a fim de que a separação fosse se colocando como uma necessidade íntima e legítima, não como uma imposição do mundo para comigo, ou negligência de minha parte para com minha filha.

Não sei se escola é o melhor espaço de convivência extrafamiliar para uma criança pequena. Em uma sociedade na qual "produzir" ganha um significado quase puramente econômico, a escola infantil é, entre outras coisas, o local onde a população "produtiva" deixa a população "improdutiva" até que esta possa reunir-se àquela... Impossível não enxergar na escola uma certa cooptação da mais tenra infância pela lógica do trabalho e do poder, e é um desafio encontrar um lugar um pouco mais afastado dessa concepção. Mas ela é o espaço que está disponível.

Esses dias ouvi esta frase, não me lembro onde, parece que é um ditado africano: "É preciso toda uma aldeia para educar uma criança". Isso me pareceu tão bonito, por várias razões, mas neste momento o que bateu em mim foi "Ok, lá em casa não tem aldeia nenhuma, só tem eu..." Então... escola. No tempo certo, que não é o da licença-maternidade, da LDB, do pediatra ou da vizinha. É o tempo em que me sinto capaz de viver essa relação, de incorporar essa nova experiência ao universo complexo da relação que nos envolve a todos, mãe, filha, marido, família. Lá vamos.