domingo, 12 de dezembro de 2021

Dezembro

Entre eventos e afazeres, votos e balanços, paro por um instante na frase há anos eleita uma favorita: abraço o que existe.

Este ano precisei, por expressa orientação médica, olhar para o horizonte, buscar o céu, inventar sonhos. Achei meu sonho exatamente onde ele estava, minha fantasia no meu mais prosaico.

Eu gosto do que há de prosaico na vida.

O chão é onde sempre mais gostei de estar. É de lá que a gente consegue ver o céu.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

O gosto do tempo

 

Na casa da minha amiga tinha sempre pão com requeijão e bolo de brigadeiro, que a mãe dela fazia. Sempre afundava no meio, e aquele bolo melado e convexo na forma redonda de inox ficou sendo para mim a imagem platônica do bolo de brigadeiro, da qual todos os outros viriam a ser o real que trai o ideal, como ocorre com os namoros e o amor, por exemplo.

Eu cresci com esse bolo, é o que sinto, mas a verdade é que ele entrou na minha vida quando eu já me encaminhava para a adolescência.

Da infância tenho lembranças mais fragmentárias, e não tenho certeza se o bolo da minha avó – recheado sempre com uma lata de leite condensado cozida e coberto de confeito colorido – era mesmo sempre esse ou se sou eu que repito indefinidamente um determinado aniversário estendendo a todos os primos aqueles mesmos confeitos e o encantamento com a habilidade mágica de se cozinhar uma lata e obter o creme denso, macio, brilhante. Episódios limitados ganham perenidade na nossa memória de mortais.

Nunca fui tão de doces, mas coca-cola com chocolate pode parecer o lanche de uma adolescência inteira mesmo se você só o comeu às vezes, no intervalo das aulas da tarde, naquela combinação de prazer e ansiedade que na juventude tem a cara da independência. Quando eu soube que Renato Russo morreu, estava lanchando coca-cola com chocolate. Minha amiga, outra, teve raiva, disse que não o perdoava. Perplexidade às três da tarde.

Quando comi torta de frango com café, sozinha, na mesa de uma lanchonete, fiquei adulta. A gente fica adulta muitas vezes, e é sempre um acontecimento.

Na casa dos meus pais não tinha torta. Tinha a moqueca com o molho denso amarelo pleno, tinha o manjar com as ameixas das quais me aproximei muito lentamente, um aprendizado, tinha churrasco cortado em tirinhas finas e pão com vinagrete que eu como sempre sempre muito. Mas não tinha torta. Torta era comida da rua, comida do mundo lá fora. E eu não tomava café, tomava coca-cola. Por que os adultos tomavam café se tinha coca?

Tomar café com torta de frango na mesa da faculdade combinava muito com o xerox de um cara chamado Jakobson que eu precisava ler e cujo nome não sabia pronunciar.

Hoje sentei num café e pedi um expresso com torta de frango. Me deu saudade.


domingo, 9 de maio de 2021

Maternidade real

 

A maternidade imposta

a maternidade enquadrada

a maternidade patriarcal

ela é um roubo.


Maternidade expropriada.


O horizonte: maternidade gozo.


quarta-feira, 24 de março de 2021

Cores


Dentre as coisas que a quarentena me trouxe, uma dor persistente no pescoço, a vontade de pintar como se eu soubesse fazê-lo, e um punhado de fios brancos pela cabeça, que parecem tanto mais numerosos quanto mais os examino no espelho.


Recentemente notei: os fios não ficam brancos. Ocorre que ganhamos novos fios, brancos desde sempre. Deduzo isso do fato de que alguns deles são curtos, às vezes curtíssimos. Fios tão pequenos como aqueles que ganhamos em algum momento da adolescência quando odiamos nossos cabelos, ou como aqueles que nos vêm após o nascimento dos filhos e quase não notamos, ocupadas com o bebê que nos olha.


Eles são espetados, não se alinham aos demais. Como poderiam?


E eu que queria imitar a moça do filme, de chanel vermelho, agora hesito diante da possível tintura. E se com ela eu acabar perdendo todo o espetáculo?