domingo, 29 de dezembro de 2013

Um viva à livre circulação


Em julho, quando percorremos vários milhares de quilômetros para conhecer a belezura da Chapada das Mesas, realizando um circuito que atravessou os estados de São Paulo, Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí, Baía, Minas Gerais e Rio de Janeiro, Teresa voltou de viagem sabendo falar "mamão" e "Maranhão".

Neste Natal, demos um pulinho aqui no interior de São Paulo para visitar a família. Na volta, mais ou menos em Caieiras, Teresa soltou a nova palavra aprendida na viagem: "pedágio".

(p.s.: este não é um post patrocinado, e eu juro que a história é verdade...)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Kiwi e o mundo lá fora


Eu nunca gostei de kiwi. Me pergunto quem foi o primeiro ser humano a ter a ideia de abrir aquela bolinha peluda para ver se era bom de comer. E achou que era, a despeito da polpa aguada e das irritantes sementinhas crec-crec (também não gosto das do maracujá). Não, obrigada, posso ter minha parte em manga?  Daí que nunca houve kiwi na minha casa, nunca pedi no restaurante, nunca peguei no bufê de café da manhã do hotel. Pois um belo dia eu pergunto à minha filha o que ela quer comer, e ela responde "Ií". Hã, kiwi? Não tem kiwi, filha... E num outro dia, olhando a fruteira da casa de uma amiga, a menina me arregala os olhos com um sorriso de orelha a orelha e aponta: "Ií!". De onde veio isso, jizuis?!...

Antes que me venham com respostas místicas, já respondo: veio da escola. Uma das coisas legais da escola da Teresa é o lanche coletivo, cheio de frutas e comidinhas bacanas, que eles compartilham sentados à mesa. E lá ela conheceu a frutinha peluda que nunca passou pela minha porta. E foi por conta de um desses episódios do kiwi que me dei conta (da obviedade) de que a escola é um local para ampliar horizontes, encontrar coisas novas, conhecer aquilo que... não sou eu, ops!

Talvez este seja o aprendizado mais fundamental e mais difícil da condição de mãe (e pai, também, na sua medida, imagino): saber seu filho como outro, entender a presença nova que ele significa no mundo, e permitir que ele aprenda a se ligar a esse mundo com seus próprios recursos. O pediatra de uma amiga lhe disse, no momento em que se aproximava o fim do aleitamento exclusivo de seu bebê: está na hora de apresentar seu filho às cores do mundo.

Sempre que eu olho para os ombros de minha filha, desenhados pelo mesmo pincel que pintou seu pai, me lembro de que ela não é minha. Ela só existe porque minha história se entrelaça com outra história. Ela é parte de uma história nossa. E o kiwi veio me ensinar que a cada dia ela constrói mais um pedacinho de uma história sua.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

E se nos obrigassem a comer?


Já ensaiei várias vezes escrever aqui alguma coisa sobre alimentação e alimentação infantil, porque pensar na introdução alimentar da minha filha (e realizá-la) me fez refletir sobre tanta coisa, das mais diretamente relacionadas até outras que podem ser uma viagem... Mas justamente por isso acho que nunca consegui achar um foco para puxar o texto, que portanto nunca saiu.

Comecei a pensar sobre como seria a introdução alimentar da Teresa muito cedo, as pessoas até riam de mim... Tenho algumas teorias sobre por que esse assunto me tomou tanto, mas agora não vêm ao caso. Doida atrás de materiais de referência mais interessantes do que listas de horário de papinhas e truques para fazer seu filho comer verdura, descobri o Carlos González, um pediatra catalão genial que coloca em questão a própria pediatria e toda a montanha de chavões sobre a infância repetidos por aí em nome da ciência. E o homem ainda tem um texto leve e engraçado.

Difícil encontrar seus livros em português, mais ainda português do Brasil. A gente acha fragmentos traduzidos informalmente aqui e ali, em sites sobre infância e maternidade. Não sei dizer bem quais de seus livros têm tradução publicada em português, mas Mi niño no me come, que fala mais especificamente sobre alimentação infantil, não encontrei traduzido.

Então semana passada recebi uma amiga que começa a se preocupar com a passagem de sua filha para o mundo além-peito. E ela veio comentar comigo sua impressão de que as crianças que são deixadas livres para comerem sozinhas – prática adotada aqui em casa bem freestyle, acreditando eu que se tratava apenas da opção mais simples, menos intervencionista e mais “natural” (eu sei, eu sei, palavra péssima...), e que depois essa mesma amiga me revelou que já foi catalogada e rotulada com o pomposo nome de baby led weaning (tem até sigla: BLW!) – comem menos. Rsss... Os avós de Teresa não se cansam de fazer essa observação, e ficam numa felicidade só ao sentá-la no colo e vê-la aceitar de bom grado as colheradas de almoço ou os nacos de fruta... Até eu, que certamente sou mais boba que minha filha, acho bom se de vez em quando alguém vier me mimar com pedacinhos de queijo prontos para degustação, uvas já tiradas do cacho, garfadinhas de amor na minha boca, hã? Mas ceder o controle do meu prato o tempo todo certamente me irritaria!

Confesso que eu também tenho essa impressão de que comendo sozinhas as crianças comem menos. Mas o que importa é: por que a gente quer que elas comam mais?! Ah, por vários motivos, dos mais aos menos neuróticos, penso. Eu também não estou livre da coisa, tenho que me controlar, também quero que ela coma só mais uma colheradinha, filha, a última... Pois González parte justamente dessa preocupação de que a criança não come o suficiente – preocupação que segundo ele dá mais que chuchu na cerca na cabeça das mães contemporâneas –, para discorrer sobre as implicações éticas e práticas de obrigar crianças a comer (e ele inclui aí os truques para “obrigar” de mansinho, também), sobre os fundamentos científicos que sustentam (ou não) as práticas de alimentação infantil que adotamos hoje, e – o mais legal – sobre o momento histórico em que essa preocupação de que a criança coma mais se generaliza, se consolida e vira inclusive uma questão para especialistas. Não foi sempre assim, sabia? Eu não sabia... Até o século XIX, a preocupação era que as crianças pequenas não comessem demais, quem diria! (A chave está no advento da indústria de leite em pó, claro.)

Para encerrar seu livro, o autor escreve um epílogo chamado “E se nos obrigassem a comer?”, um conto que satiriza nosso desejo de poder e controle sobre a criança – questão sempre presente em seus textos, pelo menos os que li. Já que as editoras não publicam o livro, faço aqui mais um exercício de tradução. Eu ia adorar traduzir as obras completas do homem.


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O dever da Brigada Nutricional

O sol brilhava no alto de um céu sem nuvens, e o ar trazia o cheiro de grama recém-cortada, quando Edmundo Tavares decidiu entrar no Carpa Dourada, um restaurante agradável e não muito caro. De sua mesa, Edmundo tinha uma bela vista do parque e das magnólias em flor. Bom observador da natureza humana, ele preferiu, no entanto, sentar-se de lado, voltado para o interior do restaurante.

A clientela era tão variada quanto fascinante. Em frente a ele, um indivíduo gordo e suado comia veloz e ruidosamente, parando apenas para tragar incríveis quantidades de vinho barato. Por alguns segundos, Edmundo acompanhou como em sonho os movimentos de sua papada, uma massa esbranquiçada e ondulante como duna de finíssima areia. Não era certamente um espetáculo para entreter alguém por muito tempo, e Edmundo logo ignorou seu rechonchudo parceiro para observar uma jovem muito delgada, quase etérea, na mesa ao lado. “Delgada, quase etérea... meio cafona”, disse consigo mesmo. Quantas vezes lera essa descrição em algum livro, e “etérea” associava-se em sua mente a um matiz filosófico ou religioso, talvez sobrenatural. Agora, vendo aquela menina pálida, o olhar perdido em sabe Deus que estranhas reminiscências frente ao prato de macarrão quase intacto, compreendeu que “etérea” tinha aqui um significado muito mais terreno, simplesmente incorpóreo no sentido de não ter corpo, como naquela piada de seus dias de escola: “Anda mais magro que a radiografia de um suspiro”.

No centro do salão, junto à carpa dourada que dava nome ao local, um grupo de executivos impecavelmente vestidos (embora a mulher se distinguisse por não usar gravata) discutia acaloradamente sobre estatísticas e documentos que quase escondiam os pratos e os telefones celulares. Edmundo sorriu, pensando nos preciosos contratos manchados de tomate e gordura. Mas não, são profissionais, claro que podem ler um relatório em cima de uma saladinha de batatas sem o menor acidente.

Mais além, num canto discreto, um casal de noivos entreolhava-se feito bobos, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa. Então agora retornam a entrelaçar as mãos sobre a mesa... que voltas o mundo dá! Ou foi sua geração que teve poucas oportunidades de entrelaçar qualquer coisa em outros lugares? Será que estou ficando velho?, pensou, lembrando-se de outras mesas, outras mãos.

Não era fácil perder-se em devaneios, pois a todo momento o chamavam de volta ao mundo as risadas e gritos de um ruidoso grupo de estudantes, numa mesa logo atrás. Olhou-os de soslaio, discretamente. Eles faziam piadas, barulhentos, despreocupados, sem ligar para convenções sociais ou para o medo do ridículo. Como sempre ocorria quando observava um grupo de jovens, ele teve a impressão de ver um rosto conhecido, descartando em seguida a ideia ridícula: não, eles também teriam agora quarenta anos.

Tinham acabado de lhe trazer a salada, quando um silêncio denso e frio se espalhou pela ampla sala de refeição, como ondas em um lago. Os temidos uniformes pretos da Polícia Nutricional rapidamente tomaram posição. Ele não os viu chegar pelo parque, com certeza tinham entrado pela porta dos fundos. Eram meia dúzia de agentes, comandados por um tenente muito jovem e bem composto. Esses oficiais recém-saídos da academia, rigidamente severos e ansiosos por justificar seus galões, eram sempre os piores. Até seus próprios homens estavam atemorizados. Não deixariam passar nada.

Uma agente de meia-idade dirigiu-se rapidamente para a mesa dos executivos. Eles não tiveram tempo de guardar seus contratos e relatórios, que foram bruscamente apreendidos. “Mesa não é lugar de brincar!” O mais jovem tentou esboçar um protesto, mas a mulher o deteve com um gesto imperioso. Qualquer resistência era inútil. Se mostrarmos total submissão e comermos sem reclamar, talvez nos devolvam os documentos depois da sobremesa.

Os gracejos cessaram na mesa dos estudantes. Uma prisão como maus comedores poderia significar a desonra de suas famílias e a expulsão da universidade. Comiam muito eretos, em absoluto silêncio, levando ritmadamente à boca o garfo ou a colher. Será que estavam eretos demais, ou comiam excessivamente em uníssono? Os braços subiam e desciam com precisão coreográfica. O agente que os observava tinha uma vaga suspeita de que estavam zombando dele, entretanto por mais que se esforçasse não conseguia encontrar nada de decididamente ilegal na atitude dos rapazes, então resolveu dar as costas e ignorá-los. Várias pessoas nas mesas vizinhas reprimiam um sorriso de aprovação: talvez no fim das contas esta juventude valha mais do que parece.

Ouviram-se gritos vindos da cozinha. Em todos os restaurantes as equipes apressavam-se em sumir com qualquer resto de comida pelo ralo, mas desta vez a inexperiência de um dos ajudantes permitiu que a PN encontrasse um prato com meia porção de canelone. As leis que proibiam deixar comida no prato eram implacáveis​​. O proprietário se desmanchava em explicações.

– Sempre cumprimos as regras, vocês sabem. O cliente se recusou a terminar e fugiu, não tivemos como evitar. Ainda não houve tempo para preencher o formulário de denúncia, precisamente por isso guardamos o prato. Temos de fotografá-lo para registro... Mas estamos limpos, olhem o cesto de descartes, vaz...

Com um gesto dramático, o proprietário mostrou o cesto, e as palavras morreram em seus lábios. Restos de guisado! O novo lavador de pratos tinha cometido outro erro, e este poderia ser fatal. O sargento os fuzilou com os olhos, exigindo uma explicação. Antes que alguém conseguisse sair da paralisia, o funcionário se adiantou, tremendo:

– Tive de jogá-lo fora, pois deixei um prato cair no chão. Mas não quebrou.

– Comida não se joga fora! – rugiu o proprietário. – Outro erro e você está demitido.

Em seguida, voltando-se para o misericordioso sargento:

– É novo; é cada vez mais difícil encontrar funcionários bem preparados.

Mas ele não deixou de notar, satisfeito, a rapidez do rapaz em consertar seu próprio erro e inventar uma desculpa. Naqueles tempos, sempre sob a ameaça de ver o restaurante expropriado e colocado sob controle direto da PN, a astúcia e o reflexo rápido eram qualidades valiosas.

Edmundo Tavares não perdia nenhum detalhe do que se passava no salão, sem deixar nem por momento de prestar uma atenção aparentemente total em sua salada. Ficou satisfeito com sua escolha: uma refeição leve, mas que estranhamente sempre contava com a aprovação da PN. Os nutricionais são fascinados pelo verde. Os dois pombinhos tinham soltado as mãos imediatamente, mas não conseguiam evitar um olhar encantado de vez em quando. A agente que fora tão severa com os executivos parecia agora inclinada à condescendência, mas um olhar frio de seu tenente lembrou-a de seu dever. Postou-se junto à mesa e começou a marcar o ritmo com voz estridente.

– É para comer e ficar quieto! Colher no prato, colher na boca, uuuum, doooois, colher no prato, colher na boca, uuuuum, dooooois.

O gordo sentado em frente a Edmundo estava muito nervoso e olhava os policiais com ávida dissimulação. “Está tentando ver as insígnias”, logo percebeu. “Deve ser meio míope.”

Os nutricionais SS (Super Sebo) exigiam um peso superior à média, e quanto mais alto melhor; mas estavam sempre em conflito com os nutricionais SA (Sempre Atléticos), para os quais o peso ideal estava entre os percentis 25 e 75. Em consequência dessas lutas internas ao regime, a vida dos indivíduos com peso acima do percentil 75 ou entre os percentis 25 e 50 tornara-se bastante difícil. Mas não tanto quanto a dos infelizes que estavam abaixo do percentil 25; a maioria tinha conseguido se exilar antes do fechamento total das fronteiras.

Desta vez eram nutricionais SS, e o gordo tranquilizou-se, sabendo-se seguro. E foi além, atrevendo-se a dar um passo sempre arriscado:

– Garçom, esta perna de cordeiro estava excelente. Poderia repetir?

O desagrado do garçom era evidente, mas ele não tinha escolha. Com a PN SS no local, a repetição estava garantida. O proprietário em pessoa trouxe, sorrindo, a nova porção. Mas a vingança foi sutil: o prato estava completamente cheio. O gordo empalideceu ao vê-lo; queria apenas “mais um pouquinho”, mas aquilo era demais. E deixar algo que ele mesmo tinha pedido era o pior dos crimes.

Quando o proprietário se arrependeu, já era tarde demais. O objetivo do homem, percebeu ele, não era aproveitar-se da situação, mas apenas proteger-se. Perseguidos pela SA, a única salvação dos obesos era ter amigos na SS. Subitamente envergonhado, tentou oferecer uma saída:

– Desculpe, senhor, mas acabou nosso pudim com creme – murmurou cordialmente. – O senhor terá de pedir outra sobremesa. Sugiro um suco de laranja.

– Tudo bem – respondeu o obeso, e podia-se ler a gratidão em seus olhos.

Talvez assim conseguisse terminar a perna de cordeiro. E aplicou-se a ela.

O tenente estava agora ao lado do aquário.

– Por que esse peixe não está comendo?

– Acabou de comer – desculpou-se o proprietário –, mas não importa.

Pegou um pouco de comida para peixe num pacote e jogou na água. A carpa se apressou em devorar a ração.

– As carpas têm sempre um espacinho vazio. Por isso as escolhi como símbolo do meu estabelecimento.

O tenente quase sorriu. “Foi uma boa ideia comprar a carpa”, pensou o proprietário, esperando que o incidente do guisado no lixo fosse totalmente esquecido.

Mas o olhar frio do tenente estava cravado na jovem esguia. O silêncio tornou-se ainda mais ameaçador. Não só parecia estar abaixo do percentil 25 (os enchimentos da roupa de baixo não conseguiam esconder a magreza das bochechas), como seu prato estava muito cheio, e ela comia com desesperadora lentidão. Mesmo àquela distância, Edmundo podia dizer que a menina suava, e ele parecia ouvir as batidas de seu coração.

Depois de contemplá-lo por alguns segundos eternos, o tenente fez um gesto para um dos policiais, que se aproximou decidido.

– Venha, coma um pouco, está muito bom. Assim, muuuuito bem. Você precisa crescer, colocar um pouco de carne nesses ossinhos. Vamos, outra colheradinha, iiiisso, fica tão linda quando come. Está cansada, meu amor? Eu te ajudo, me dá o garfo. Olha o aviãozinho, brrrrrr brrr! Um avião de macarrãozinho para a minha menina! Muito bem! Olha, um passarinho na janela, que passarinho lindo. Viu como abre o biquinho? Muuuito bom, um pouquinho mais. Agora mais um pouquinho paaaara a vovó, e este outro pouquinho paaaara o papai... Venha, não vamos deixar esse macarrãozinho tão gostoso. O cozinheiro preparou com taaaanto carinho. Isso, muito bem, falta pouco. Não quer ir ao cinema mais tarde? Então primeiro tem que terminar a comidinha, para ficar fooorte. Ai, que linda, como come a minha menina!

Lenta, penosamente, o macarrão foi desaparecendo, então o agente da PN passou o pão no molho e enfiou na boca da mulher apavorada. Agora falta o bife com batata! Edmundo, como muitos outros clientes do restaurante, prendiam a respiração. Era evidente que ela não conseguiria terminar o segundo prato.

O garçom trouxe a carne. Ele serviu o menor bife possível e a quantidade mínima de batatas, e lançou para a jovem um olhar de cumplicidade. Ela só conseguiu esboçar um sorriso de agradecimento; a porção ainda estava bem acima de suas possibilidades, e o garçom sabia disso. Mas não podia se expor mais; em várias ocasiões, a PN já havia mandado pesar porções suspeitamente pequenas.

O agente cortou a carne em pedacinhos minúsculos, e retomou sua interminável ladainha. Mas as colheradas eram cada vez mais penosas, e cada vez mais palpável o terror de um e a cólera do outro. Edmundo, como os outros clientes, tentava concentrar-se em seu próprio prato, no ritmado vai e vem do garfo. Não ver, não ouvir, não pensar. Simplesmente sobreviver. Quantas vezes Edmundo sonhara com um gesto heroico, um arrebatamento de dignidade; levantar e gritar: “Deixe a menina, deixe-a em paz”. Em vez disso, teve de engolir sua própria covardia e escutar o que o policial dizia à mulher:

– Está vendo como come esse senhor? Ele sim é bem comportado! Vamos lá, você tem que ficar grande, como esse senhor!

A jovem, com o olhar perdido no vazio, abria e fechava mecanicamente a boca, enquanto duas lágrimas caíam sobre uma das bochechas que inchava perigosamente. “Faz tempo que não engole”, pensou Edmundo. De repente, com um ruído estremecedor, mescla de tosse e náusea, a mulher deixou cair uma bola de carne ressecada e dolorosamente mastigada.

– Tenente, ela está fazendo bola!

O oficial se aproximou decidido. Uma sonora bofetada quebrou o consternado silêncio. Acabou, pensou Edmundo, acabaram os aviõezinhos e as palavras amáveis. Não havia piedade para os terroristas do BOLA (Bloco de Oposição pela Liberdade de Alimentação). Ele sabia o que estava por vir: iam obrigá-la a engolir a bola repugnante e todo o resto da carne. Abririam sua boca à força, afundando com dedos de ferro as bochechas entre seus dentes, de modo que ela se morderia ao tentar fechá-la. Iam obrigá-la a comer até vomitar, vomitaria sobre o prato e a fariam comer seu próprio vômito. Edmundo fechou os olhos, angustiado, inspirou lenta e profundamente, tentando não vomitar ele também enquanto escutava os gritos de terror da jovem:

– Não quero mais! Não quero mais! Não quero mais!

Edmundo se forçou a abrir os olhos. Escuridão. Então percebeu que tudo tinha sido um sonho. “Que sonho ridículo”, pensou. “Polícia Nutricional. Quem poderia pensar numa coisa dessas?”. Mesmo assim continuava suando, agitado. Parecera tão real. Especialmente aquele último grito.

– Não quero mais! Não quero mais!

De novo! Estava ouvindo! O terror arrepiou sua espinha. Mas não, não era sonho. Era sua filha Vanessa, de dois anos, que no cômodo ao lado gritava sonhando. Que estranho, será que tivemos o mesmo sonho? Não, claro que não, ela deve estar acordada. É isso, eu é que devo ter gritado dormindo, e ela está repetindo para chamar a atenção. Essa...! Realmente, essas crianças são umas espertinhas. O médico bem avisou, quando nos explicou como ensiná-la a dormir, que ela tentaria todos os truques para nos atrair ao seu quarto à noite. Mas eu não vou, claro que não. Ela precisa aprender a dormir sozinha, chega de fazer a gente de bobo.

Aliás, um dia desses vamos ter que falar com o médico sobre a comida. Come cada vez menos, e ainda por cima começou a fazer birra. Alguma coisa vamos ter de fazer com essa menina.


GONZÁLEZ, Carlos. Mi niño no me come. Consejos para prevenir y resolver el problema. Madri, Temas de Hoy.