sábado, 21 de maio de 2016

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Recentemente eu participei de uma coisa chamada “Treinamento de Inteligência Emocional”. Ganhei de umas amigas, muito queridas, que achavam que era algo muito bonito que eu nunca viria conhecer, pois jamais me lançaria por conta própria naquilo. Elas estavam duplamente certas: é bonito mesmo, e eu dificilmente me meteria em algo com esse nome.

Começa pelo “treinamento”. Treinamento me faz lembrar daquelas experiências com bichinhos levando choque e ganhando comida. Para mim, a ideia de seres humanos sendo treinados remete ao exército e às distopias relacionadas ao totalitarismo. Manipulação com base científica. Preparação do ser humano para a barbárie.

E depois a tal “inteligência emocional”... Não sou psicóloga nem neurobióloga, mas do alto da minha ressonante ignorância eu simplesmente acho que nós temos inteligência, pronto, uma só. Uma coisa complexa e multifacetada, que não dá pra sair quebrando em “inteligência lógica”, “linguística”, “espacial”, “emocional” e por aí vai. O que ocorre é que nossa existência foi intensamente fragmentada. Em uma sociedade atomizada, o mundo do trabalho foi nos quebrando em mil pedacinhos, a fim de identificar qual deles interessa e quanto vale pagar por cada um. Em certo momento da história, éramos quase todos “braços”. Agora, temos de nos esforçar um pouco mais e, se nos qualificarmos o suficiente, podemos ser também, além de “braços”, “proatividade”, “flexibilidade”, “liderança”.

Mas ser quebrado em mil pedaços não é, evidentemente, um procedimento gerador de uma existência plena ou saudável. A gente adoece, em pedaços. Em algum momento, a complexidade que nos foi tirada tem de ser entregue de volta, mesmo como ilusão, mesmo na forma de mercadoria (pois essa é a coerência de nosso momento histórico), quem sabe como utopia. Então temos uma miríade de soluções: tratamentos holísticos e espirituais, terapias tradicionais repaginadas (minha mãe foi fazer reiki e disse que é igualzinho quando ela ia na benzedeira – achei muito sagaz), psicoterapia em dezenas de versões, grupos de apoio, medicamentos para corrigir nosso cérebro (sem corrigir nossa vida)... E até treinamento de inteligência emocional. (É bom dizer – embora evidentemente ninguém precise do meu aval para coisa alguma – que acho todas essas “soluções” absolutamente válidas como busca pessoal. Apenas cabe pensar o que elas revelam sobre nosso mundo e nossas vidas.)

Pois é, fui lá... E achei muito bom. Revelador e acolhedor. Mas continuo não gostando do nome, e acho que ele não faz jus ao que se passa ali. Para mim, trata-se de um processo terapêutico. E processos terapêuticos me parece que são bem o oposto do treinamento, são o “destreinamento”. Ter a oportunidade de olhar para os nossos comportamentos condicionados e percebê-los, observar nossos sentimentos, imaginar outras possibilidades de ação e de reação, isso é o contrário do treinamento, é desenvolver a sensibilidade a respeito de nós mesmos, a responsabilidade por nós mesmos. E isso não tem a ver com um fragmento de nós chamado “inteligência emocional”, tem a ver com a totalidade do nosso ser, inserida no emaranhado da nossa existência, que inclui desde os nossos antepassados até as nossas fantasias de descendência.

Mas talvez eu não tenha entendido nada, e só estou tentando recusar a ideia de que fui treinada.

E talvez tenha sido bom.

Dormir. Dormir é um assunto na minha vida. Uma questão, um problema. Acho adormecer uma coisa muito difícil. De vez em quando eu digo que não sou de sonecas, porque dormir e acordar são duas coisas tão difíceis, mas tão difíceis, que eu prefiro fazer só uma vez por dia. Meu marido diz que eu não tenho insônia, porque, embora custe a dormir, depois que eu durmo passo doze horas na cama de boa – mas eu me apego aos especialistas que dizem que isso também chama insônia (vão patologizar tudo menos justamente a minha doença?! ora bolas...). Pois a minha insônia tem sido alvo de reflexão há muito tempo, e fui aprendendo a aceitá-la, compreendê-la, talvez decifrá-la um pouco. E dormir tem sido melhor.

Em certo momento do treinamento, nos orientam a dormir. Estamos exaustos, deitamos em colchonetes. Eu inicio um leve processo de pânico, porque sei que estou exausta e seria ótimo dormir, mas também sei que não vou dormir, porque eu não durmo. Eu não durmo. Sucumbi, depois de anos relutando, a colocar uma TV no quarto para me ajudar a dormir, porque eu não durmo.

Deitamos em colchonetes. Apagam as luzes. Cuidam da temperatura ambiente. Uma voz calma nos orienta. (Eles acham que eu vou dormir só por causa de um escurinho e uma voz tranquila...)

Até que a voz diz uma coisa que eu acho que ninguém nunca me disse antes: “Você pode dormir, porque está em segurança. Quando você acordar, tudo estará como agora. Não há por que ter medo. Você está seguro.”

Quando acordei e percebi que tinha dormido, comecei a chorar.

Eu dormi.

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