domingo, 15 de março de 2020

Cirandeira



Meu dia hoje começou com uma ciranda.

Elas ainda não sabem, mas tenho para mim a certeza de que em algum ponto de sua vida adulta Teresa e Isabel entenderão que tiveram a graça de passar sua primeira infância não em uma escola, mas no quintal das fadas. E fadas obviamente não iniciam reuniões colocando o projetor de Power Point na tomada. Elas fazem fadices. Ciranda, quando todos pedem que nos afastemos.

Tudo muito responsável, sem beijos ou abraços, e precedido por uma ciosa dose de álcool gel em cada uma das mãos envolvidas. As fadas não fazem discursos, elas mostram o que há para ver: de alguma forma, é preciso dar as mãos.

Eu tenho achado belo, embora profundamente angustiante, o modo como esta epidemia tem colocado cruamente diante de nós o escárnio quanto à crença absurda de que um mundo fundado nas individualidades possa funcionar. Aprendi desde criança: minha liberdade acaba onde começa a do outro. Mas vem o vírus rir de nossa insensatez e lembrar que havia uma outra trilha a seguir, e nós a abandonamos: minha liberdade só existe quando existe a do outro.

Você pode estocar quanto papel higiênico quiser, mas se seu motorista de aplicativo ou sua diarista não pararem de trabalhar – porque obviamente eles não podem, já que não há assistência social que lhes assegure nada –, o contágio vai se ampliar, e a Cuca te pega. Mas pelo menos ainda podemos contar que eles considerem procurar o posto de saúde caso se sintam doentes, já que temos um sistema de saúde universal – coisa que, por exemplo, a America great again não tem.

Fechemos as escolas, mas as crianças não podem ficar com os avós. Veja bem, muitas delas inclusive são criadas pelos avós. Aliás, mais precisamente, pelas avós. Dormem no mesmo quarto, o único disponível.

Governos mobilizam indenizações e fundos especiais para que as pessoas possam suspender o trabalho e se isolar em casa. Não por mera solidariedade aos menos favorecidos, mas porque cada trabalhador que não possa largar o volante por algumas semanas é um espalhador de vírus em potencial. Se ele apenas morresse sozinho, não haveria tanto alarde. Mas não. Aí a beleza do vírus.

Anos atrás, quando minhas preocupações viróticas de mãe de criança pequena na escola concerniam a meros resfriados, ganhei de presente uma linda perspectiva sobre as doenças contagiosas da primeira infância: elas são um instrumento de formação do organismo da criança, de constituição do corpo que será o dela. Não mais apenas as células herdadas dos pais, mas também aquelas que serão formadas no contato entre esse corpo herdado e o mundo. Um novo ser, realmente novo, porque alimentado por aquilo que já é.

Nenhum de nós está sozinho. E não adianta cada um fazer a sua parte.