Esses dias assisti a um
vídeo de uma campanha sobre violência contra a mulher, em que meninas vestidas
de princesa – com direito a cetim cor-de-rosa, tiara e purpurina – enchem a
boca de palavrões, bem daqueles que a mamãe e a professora não deixam a gente
falar, para lançar uma provocação: seriam esses palavrões mais chocantes,
prejudiciais e ofensivos do que uns tantos outros que têm trânsito livre por
aí, como desigualdade salarial, violência contra a mulher ou estupro? Para
arrematar, um garoto também vestido de princesa entra em cena disparando gírias
tipicamente masculinas, para esculhambar o tratamento que os homens dão às
mulheres.
Não sei da efetividade
da campanha, mas a pegadinha funciona: as pessoas ficam escandalizadas com a
boca suja da criançada.
É impressionante como a
sociedade é prescritiva em relação ao uso da língua. Há muitos anos, quando eu
era professora de Língua Portuguesa, um colega, que atuava de maneira muito
estreita com o movimento pela reforma agrária no Brasil, veio conversar comigo
sobre sua vontade de criar um projeto para desenvolver as capacidades de
comunicação e expressão dos trabalhadores rurais com quem ele militava. Ele se
preocupava, como de costume, com o fato de que aquelas pessoas não dominavam a
norma culta e isso as prejudicava de alguma forma. Emprestei-lhe um livro do
Marcos Bagno, que eu adoro, chamado Preconceito linguístico, em que o autor
discute e demonstra o quanto nossa apreciação sobre a “boa língua portuguesa” é preconceituosa e equivocada, e o quão político isso é (ler o livro é tarefa
prazerosa para uma sentada, pois é curtinho e plenamente acessível a não
linguistas). Isso mudou a perspectiva do meu colega a respeito do projeto que vislumbrava.
Esse preconceito tão amplamente
arraigado em nossa sociedade é propagado de maneira sólida inclusive pela
escola, instituição supostamente encarregada de ampliar nossas possibilidades
de conhecer, questionar e produzir o mundo. Desde muito cedo, procuramos moldar a expressão linguística das crianças – indicando o que é certo
e errado, feio e bonito, o que pode e não pode –, com o mesmo tom de quem difunde
preceitos morais. Em minha opinião, fariam melhor os pais e a escola se procurassem
proporcionar aos pequenos a experiência da complexidade da linguagem (já seria muito bom se não se esforçassem tanto para bloqueá-la, porque as crianças acham por
si mesmas muitos caminhos para alcançá-la). São muitos os registros, os jargões, os
dialetos; todos compõem a complexidade da língua; todos têm razão de ser; cada
um deles que conhecemos acrescenta algo à nossa capacidade de expressão e de
apreensão do mundo. Isso não significa que precisemos ou devamos abdicar do papel de mediação e até de proteção
que o processo educativo implica – eu posso evitar que minha filha assista a
cenas de sexo explícito na televisão, mas nem por isso vou dizer a ela que sexo
é feio.
A literatura vive entre
o poder e o limite da palavra. Toda uma legião de poetas românticos debateu-se
com uma língua dilaceradoramente incapaz de dar voz a seu sentimento. Graciliano Ramos descobre em um de seus meninos o espanto e o temor de se deparar com o
desconhecido, não só o ainda não visto, mas o inomeado: “Livres dos nomes, as
coisas ficavam distantes, misteriosas.” A criação e o aprisionamento são as
prerrogativas contraditórias da palavra, entendeu a Joana de Lispector: “É
curioso como não sei dizer quem sou [...] Sobretudo tenho medo de dizer, porque
no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto
se transforma lentamente no que eu digo.” Guimarães Rosa viu tantas
possibilidades na língua que lhe foi legada, que misturou tudo e fez outra.
E nós, pais e
educadores, com a pretensão de estar bem formando o que virá, nos amesquinhamos
apontando “feios” e “errados”... Considero aterrorizante que a
nossa educação linguística – ou seja, a educação relacionada a uma prática
social de tamanha amplitude e diversidade – tenha como referência e horizonte a definição e o domínio de um
padrão muito restrito e uniforme, e a supressão e estigmatização de tudo o que
não corresponde a ele.
Na ânsia de formatar o
comportamento aceitável, criamos para as crianças uma prescrição altamente
restritiva sobre o uso da língua. Criamos zonas proibidas da linguagem como
criamos zonas proibidas do corpo: “Tira a mão daí”, “Não é assim que se fala”,
“Não fala isso, que é feio!”. E ainda mais para as meninas. Em nosso imaginário e nossa prática marcados pela dominação masculina, do mesmo modo como a manipulação do próprio
corpo é mais aceitável quando observada em meninos, a liberdade de manipulação
da língua também é mais ampla para eles: o palavrão lhes cabe melhor (e o
vídeo das meninas “boca suja” sabe disso, tanto que o garoto não fala palavrão – chocaria muito menos –,
mas adota ironicamente gírias e expressões tidas como masculinas). Meninas não
correm, meninas não gritam, meninas não falam palavrão. Às mulheres cabe um
espaço restrito, um corpo restrito, uma língua restrita.
A língua, prática social,
criação permanente, coisa viva, alimenta-se daquilo que fomos capazes de forjar, e nos permite apreender o que há. Deusa de duas caras, oferece-nos os
instrumentos e os obstáculos do instituído, e observa como nos saímos na
extenuante-regozijante tarefa de dar forma ao vindouro, criar a criação. Não
serei eu, como mãe, que abraçarei a tarefa de amesquinhar isso. Ou de ensinar a
minha filha que seu direito a essa complexidade é menor que o de qualquer outra
pessoa.
Eu não ensino a minha filha que menina não fala palavrão. Abraço a missão de ajudá-la a encontrar os meios para dizer tudo o que ela desejar.
Eu não ensino a minha filha que menina não fala palavrão. Abraço a missão de ajudá-la a encontrar os meios para dizer tudo o que ela desejar.
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