domingo, 2 de novembro de 2014

A criança e a palavra, ou por que menina também pode falar palavrão


Esses dias assisti a um vídeo de uma campanha sobre violência contra a mulher, em que meninas vestidas de princesa – com direito a cetim cor-de-rosa, tiara e purpurina – enchem a boca de palavrões, bem daqueles que a mamãe e a professora não deixam a gente falar, para lançar uma provocação: seriam esses palavrões mais chocantes, prejudiciais e ofensivos do que uns tantos outros que têm trânsito livre por aí, como desigualdade salarial, violência contra a mulher ou estupro? Para arrematar, um garoto também vestido de princesa entra em cena disparando gírias tipicamente masculinas, para esculhambar o tratamento que os homens dão às mulheres.

Não sei da efetividade da campanha, mas a pegadinha funciona: as pessoas ficam escandalizadas com a boca suja da criançada.

É impressionante como a sociedade é prescritiva em relação ao uso da língua. Há muitos anos, quando eu era professora de Língua Portuguesa, um colega, que atuava de maneira muito estreita com o movimento pela reforma agrária no Brasil, veio conversar comigo sobre sua vontade de criar um projeto para desenvolver as capacidades de comunicação e expressão dos trabalhadores rurais com quem ele militava. Ele se preocupava, como de costume, com o fato de que aquelas pessoas não dominavam a norma culta e isso as prejudicava de alguma forma. Emprestei-lhe um livro do Marcos Bagno, que eu adoro, chamado Preconceito linguístico, em que o autor discute e demonstra o quanto nossa apreciação sobre a “boa língua portuguesa” é preconceituosa e equivocada, e o quão político isso é (ler o livro é tarefa prazerosa para uma sentada, pois é curtinho e plenamente acessível a não linguistas). Isso mudou a perspectiva do meu colega a respeito do projeto que vislumbrava.

Esse preconceito tão amplamente arraigado em nossa sociedade é propagado de maneira sólida inclusive pela escola, instituição supostamente encarregada de ampliar nossas possibilidades de conhecer, questionar e produzir o mundo. Desde muito cedo, procuramos moldar a expressão linguística das crianças – indicando o que é certo e errado, feio e bonito, o que pode e não pode –, com o mesmo tom de quem difunde preceitos morais. Em minha opinião, fariam melhor os pais e a escola se procurassem proporcionar aos pequenos a experiência da complexidade da linguagem (já seria muito bom se não se esforçassem tanto para bloqueá-la, porque as crianças acham por si mesmas muitos caminhos para alcançá-la). São muitos os registros, os jargões, os dialetos; todos compõem a complexidade da língua; todos têm razão de ser; cada um deles que conhecemos acrescenta algo à nossa capacidade de expressão e de apreensão do mundo. Isso não significa que precisemos ou devamos abdicar do papel de mediação e até de proteção que o processo educativo implica – eu posso evitar que minha filha assista a cenas de sexo explícito na televisão, mas nem por isso vou dizer a ela que sexo é feio.

A literatura vive entre o poder e o limite da palavra. Toda uma legião de poetas românticos debateu-se com uma língua dilaceradoramente incapaz de dar voz a seu sentimento. Graciliano Ramos descobre em um de seus meninos o espanto e o temor de se deparar com o desconhecido, não só o ainda não visto, mas o inomeado: “Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas.” A criação e o aprisionamento são as prerrogativas contraditórias da palavra, entendeu a Joana de Lispector: “É curioso como não sei dizer quem sou [...] Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.” Guimarães Rosa viu tantas possibilidades na língua que lhe foi legada, que misturou tudo e fez outra.

E nós, pais e educadores, com a pretensão de estar bem formando o que virá, nos amesquinhamos apontando “feios” e “errados”... Considero aterrorizante que a nossa educação linguística – ou seja, a educação relacionada a uma prática social de tamanha amplitude e diversidade – tenha como referência e horizonte a definição e o domínio de um padrão muito restrito e uniforme, e a supressão e estigmatização de tudo o que não corresponde a ele.

Na ânsia de formatar o comportamento aceitável, criamos para as crianças uma prescrição altamente restritiva sobre o uso da língua. Criamos zonas proibidas da linguagem como criamos zonas proibidas do corpo: “Tira a mão daí”, “Não é assim que se fala”, “Não fala isso, que é feio!”. E ainda mais para as meninas. Em nosso imaginário e nossa prática marcados pela dominação masculina, do mesmo modo como a manipulação do próprio corpo é mais aceitável quando observada em meninos, a liberdade de manipulação da língua também é mais ampla para eles: o palavrão lhes cabe melhor (e o vídeo das meninas “boca suja” sabe disso, tanto que o garoto não fala palavrão – chocaria muito menos , mas adota ironicamente gírias e expressões tidas como masculinas). Meninas não correm, meninas não gritam, meninas não falam palavrão. Às mulheres cabe um espaço restrito, um corpo restrito, uma língua restrita.

A língua, prática social, criação permanente, coisa viva, alimenta-se daquilo que fomos capazes de forjar, e nos permite apreender o que há. Deusa de duas caras, oferece-nos os instrumentos e os obstáculos do instituído, e observa como nos saímos na extenuante-regozijante tarefa de dar forma ao vindouro, criar a criação. Não serei eu, como mãe, que abraçarei a tarefa de amesquinhar isso. Ou de ensinar a minha filha que seu direito a essa complexidade é menor que o de qualquer outra pessoa.

Eu não ensino a minha filha que menina não fala palavrão. Abraço a missão de ajudá-la a encontrar os meios para dizer tudo o que ela desejar.

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