Um jantar contra o desperdício de comida, aproveitando as
sobras da geladeira (na minha época, seria economia doméstica, mas hoje acho que
colocariam como educação ambiental).
Coloco uma tábua para mim e outra para ela, pois picar
ingredientes é, atualmente, a brincadeira mais esperada de todas as noites (desenvolvimento
da coordenação motora fina).
Começamos com a sobra dos legumes assados do jantar de ontem.
Com a faquinha redonda e quase sem fio, ela vai picando cada um em pedaços
ainda menores e, no afã de picar infinitamente, preciso lembrá-la de que não
podem ficar pequenos demais – senão queima, não é, mamãe? Mostro um exemplo: devem
ficar deste tamanho (reconhecimento de formas e proporções).
Juntamos um pedaço de queijo branco quase perdido e uma
bandeja de salame fatiado que ia pelo mesmo destino (aprendendo diversidade e tolerância,
nada de “tribos”, afinal aqui em casa a gente gosta de legumes mas não é nada
macrô). Enquanto pica, vai comendo pedacinhos de brócolis e couve-flor (nem é educação
alimentar, é prática sensorial hedonista: ninguém ainda contou pra ela que a
gente come legumes porque são saudáveis, e a menina segue achando que são apenas
gostosos).
Deixo-a preparando o recheio e vou começar a massa (trabalho
em equipe). Ela está muito atenta a sua tarefa (desenvolvendo a capacidade de concentração
– esses especialistas que dizem que uma criança só consegue se concentrar numa
tarefa por três minutos deviam puxar uma cadeira e observá-la desfazer uma
cabeça de alho, esse brinquedo de montar que os adultos usam pra temperar
comida). Vou colocando tudo no liquidificador, e ela se mantém atenta a sua
tarefa. Mas quando vou quebrar os ovos, titubeia: quebrar ovos é tão legal que
talvez valha a pena parar de picar (aprendendo a enfrentar dilemas e tomar decisões).
Observo que o salame está difícil, e concluo que foi ambição
demais praquela faca cega – o salame a mamãe vai ajudar a terminar, está bem?
(aprendendo a lidar com limites e frustrações)
Vamos colocando toda a parte picada em uma travessa. Um pouquinho
de sal e pimenta-do-reino. Eu coloco, mamãe! (opa, desenvolvendo a
individuação, ai meus sais). Um pouquinho de cheiro verde (absorvendo as práticas das gerações
anteriores – gastronomia às vezes é legal, mas a comida também é o bastão da avó).
Misturamos tudo bem misturado, sem deixar cair fora da tigela (desenvolvimento da
lateralidade, dentro e fora, na frente, ao lado).
Hora de colocar tudo na travessa. Primeiro um pouco de
massa, depois o recheio, distribuído em colheradas, e depois o resto da massa (noções
de sucessão, todo e parte). No forno você não pode mexer, ele queima (olha o tal
do limite aí, gente!, e até umas noções de termodinâmica, só pra incrementar a brincadeira, vai...).
Agora precisamos esperar a torta assar. Demora? Demora!
(aprendendo a esperar, claro!)
Enquanto esperamos, não custa misturar umas alfaces e picar aqueles
aspargos pra uma salada. Não amassa o aspargo, que meleca! (experimentado diferentes
texturas). Mas eu só vou comer torta, tá bom, mamãe?, não quero salada...
No final, comeu torta e salada, porque para incentivar uma criança
a comer salada, nada melhor do que uma mãe comendo salada com prazer e alardeando
que não vai sobrar nem um pedacinho...
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Aí colocam as crianças em um quarto forrado de EVA, cheio de
plástico colorido e com barulhos repetitivos, e chamam isso de “ambiente seguro”, “atividade lúdica”
e “brinquedo educativo”. Faz-me rir, como dizia meu pai.
Adorei o texto.
ResponderExcluir:) Bj!
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