Meu dia hoje começou com uma ciranda.
Elas ainda não sabem, mas tenho para mim a certeza de que em algum ponto
de sua vida adulta Teresa e Isabel entenderão que tiveram a graça de passar sua
primeira infância não em uma escola, mas no quintal das fadas. E fadas obviamente
não iniciam reuniões colocando o projetor de Power Point na tomada. Elas fazem
fadices. Ciranda, quando todos pedem que nos afastemos.
Tudo muito responsável, sem beijos ou abraços, e precedido por uma ciosa
dose de álcool gel em cada uma das mãos envolvidas. As fadas não fazem
discursos, elas mostram o que há para ver: de alguma forma, é preciso dar as
mãos.
Eu tenho achado belo, embora profundamente angustiante, o modo como esta
epidemia tem colocado cruamente diante de nós o escárnio quanto à crença absurda
de que um mundo fundado nas individualidades possa funcionar. Aprendi desde
criança: minha liberdade acaba onde começa a do outro. Mas vem o vírus rir de
nossa insensatez e lembrar que havia uma outra trilha a seguir, e nós a
abandonamos: minha liberdade só existe quando existe a do outro.
Você pode estocar quanto papel higiênico quiser, mas se seu motorista de
aplicativo ou sua diarista não pararem de trabalhar – porque obviamente eles não
podem, já que não há assistência social que lhes assegure nada –, o contágio
vai se ampliar, e a Cuca te pega. Mas pelo menos ainda podemos contar que eles
considerem procurar o posto de saúde caso se sintam doentes, já que temos um sistema
de saúde universal – coisa que, por exemplo, a America great again não tem.
Fechemos as escolas, mas as crianças não podem ficar com os avós. Veja bem,
muitas delas inclusive são criadas pelos avós. Aliás, mais precisamente, pelas
avós. Dormem no mesmo quarto, o único disponível.
Governos mobilizam indenizações e fundos especiais para que as pessoas
possam suspender o trabalho e se isolar em casa. Não por mera solidariedade aos
menos favorecidos, mas porque cada trabalhador que não possa largar o volante
por algumas semanas é um espalhador de vírus em potencial. Se ele apenas
morresse sozinho, não haveria tanto alarde. Mas não. Aí a beleza do vírus.
Anos atrás, quando minhas preocupações viróticas de mãe de criança pequena na escola concerniam a meros resfriados, ganhei de presente uma linda perspectiva sobre
as doenças contagiosas da primeira infância: elas são um instrumento de formação
do organismo da criança, de constituição do corpo que será o dela. Não mais apenas
as células herdadas dos pais, mas também aquelas que serão formadas no contato
entre esse corpo herdado e o mundo. Um novo ser, realmente novo, porque alimentado
por aquilo que já é.
Nenhum de nós está sozinho. E não adianta cada um fazer a sua parte.