Teresa parou de mamar. Encerramos nossa amamentação.
Poderia dizer que desmamou (e desfraldou, aliás...). Mas eu
detesto essas palavras. Não sei bem por quê. Neurose de mãe superprotetora que
não quer que a filha saia de baixo das asas. Receio da ideia de estar tirando alguma
coisa dela. Recusa em fazê-la objeto de um outro ser que lhe impõe uma falta,
uma carência.
Ela conquistou seu desmame e seu desfralde. Não foi
desmamada nem desfraldada. Ela está crescendo (preciso dizer que a menina cresce mais rápido que o tempo), e assim coisas novas podem entrar em sua
vida, como a capacidade de comer de tudo, de dormir sem sugar, de ganhar o
banheiro.
Daí que um dia, contando a uma amiga que minha filha não
mamava mais, fiquei procurando uma frase para dizer em vez de “Foi um processo
bem natural...” Ela ficou um pouco espantada com a minha recusa em relação à
palavra “natural”, hoje tão frequentemente associada a apreciações positivas.
Dia desses li qualquer coisa em qualquer lugar sobre
pesquisadores terem identificado comportamento homossexual em animais. A ideia
era que esse é, portanto, um comportamento muito “natural”, logo não deveria
causar escândalo que seja observado entre seres humanos. A classificação de
“natural” legitima o ato. Se é natural, devemos respeitar, pois a natureza não
é boa nem ruim (embora haja quem diga que ela é sábia), a natureza apenas é – e
quem seria o insano a se rebelar contra aquilo que apenas é? Bem, a mim me
parece que o comportamento homossexual entre seres humanos é legítimo não
porque ele é da natureza, mas porque é da humanidade. Porque é uma realização
do afeto e da sexualidade humana. Porque é um dos caminhos socialmente
construídos para o estabelecimento de relações humanas, para a satisfação e crescimento
mútuo dos envolvidos.
Seres humanos não são naturais. E o que dizer depois da
desfaçatez de lançar assim uma frase categórica para cuja sustentação eu não
tenho repertório filosófico? Nós temos fisiologia. Temos instintos. Mas conquistamos
a capacidade de refletir de maneira inédita sobre nossa própria existência e
sobre a alteridade. E sobre nossa fisiologia e nossos instintos. A individualidade
iluminista e liberal instrumentalizada pelo mundo do dinheiro e do trabalho (cá
estou eu metendo-me em filosofias que não conheço) alimenta uma atitude
aparentemente libertadora de reivindicação do natural. Porque algo precisa se opor
ao sufocamento do corpo, da fisiologia e do instinto sob a lógica da máquina e
do relógio.
Mas essa oposição não pode ser a reivindicação do natural. O
natural é aquilo que não somos mais, e já foi dito que a história só se repete
como farsa. Se estamos para utopias, a minha é a do humano, não a do natural, a
da realização plena do humano. Seja lá o que isso for.
(A expressão “parto natural humanizado” revela bem que o
“seja lá o que isso for” é algo que ainda não sabemos bem o que é. Talvez a
possibilidade de um atendimento à mulher que constitua de fato um caminho em
direção a essa utopia seja algo tão inimaginável que ainda não se pôde nomear.)
E nessa mesma trilha vem o “desmame natural”, entendido como
aquele que respeita os ritmos da mãe e da criança, que respeita as fisiologias
e as necessidades mais íntimas daqueles dois seres.
Eu acredito que vivi o processo de amamentação da minha
filha com a profundidade que a expressão “necessidades íntimas” sugere. O que
ele me fez descobrir a respeito de mim mesma e o que me permitiu refletir sobre
a relação entre pais e filhos foi impressionante, para mim. E o fim dessa
amamentação se estabeleceu de maneira gradual, lenta, penso que respeitosa para
nós duas e, até, prazerosa e divertida.
E isso não foi natural coisíssima nenhuma!
Foi construído. Foi construído pela persistência para que a
amamentação se estabelecesse. Foi construído nos primeiros dias, quando ela não conseguia mamar e aceitou o leite ordenhado oferecido pelo pai. Foi
construído naquelas mamadas doloridas. Foi construído naquelas mamadas prazerosas, de troca
de olhares profundos. Foi construído quando fazíamos nosso mamá no sling, na
yoga, no bar. Foi construído quando entendi que os infinitos despertares
noturnos não eram bons para mim. Foi construído quando me irritei com a demanda
que me parecia grande demais. Foi construído quando parei de interromper
refeições e outras coisas importantes para amamentar. Foi construído quando entendemos
que podíamos jantar e conversar juntas, e que isso também era gostoso. Foi
construído quando percebemos que brincar na festa podia ser mais gostoso que
mamar na festa. Foi construído em cada momento em que ela percebeu que se
precisasse mesmo, poderia mamar no meio da noite, da refeição ou da festa. Foi
construído em cada noite em que a amamentação era necessária para trazer o
sono, e em cada noite em que dormimos cantando. Foi construído a cada vez que
ela mamava um tiquinho, ria porque o leite tinha acabado e pedia o outro peito.
Foi construído a cada noite em que contei a história da menina que não sabia
comer e foi crescendo e agora sabia, e ela enumerava todas as coisas que já
sabia comer. Foi construído até o último momento, quando nossa amamentação se
encerrou quase que com uma gargalhada.
Isso não é natural. Precisamos de outra palavra. Isso é uma busca deliberada por autoconhecimento e disposição consciente para se ligar ao outro. Isso
é humano.
Teresa parou de mamar. Encerramos nossa amamentação. Da
última vez, ela tentou, começou a rir desabridamente e lançou “Não tem nada,
né, mamãe? É porque o peito sabe que eu já sei comer.” Assim encerramos essa
fase da nossa relação: juntas e rindo.
Que sejamos capazes de caminhar sempre assim, minha filha.