De vez em quando
tenho umas vontades de mudar tudo, assumir uma vida inteiramente diferente.
Aprender inglês em São Francisco.
Pintar o cabelo de azul. Estudar biologia. Arranjar um
emprego nove-às-seis. Mudar os amigos. Morar dois anos em Buenos Aires. Trocar
o apartamento por uma casa no mato. A verdade é que na maioria das vezes acabo apenas cortando o cabelo e mudando a cor das almofadas...
Sempre vi
essas vontades como problema de uma personalidade volúvel – sou de fase. Meu
pai cedo entendeu isso em mim, que a grande dor da escolha não é o que a gente
pega, mas aquilo que a gente deixa, então vou querendo um pouquinho de tudo
aqui e ali. E me dizia que pedra que rola não cria limo. Ele tem uns ditados
engraçadíssimos, meu pai, mas, francamente, essa metáfora não convence ninguém:
quem quer criar limo?!
No exercício de
tentar ser mais generosa comigo mesma, há algum tempo resolvi aceitar que de
vez em quando preciso da mudança. Decidi enxergar a coisa pelo prisma do fato,
não do defeito. Preciso, me traz vitalidade. Tem gente que precisa saber que o
sofá estará sempre ali esperando por ela. Eu preciso saber que posso mudar o
sofá se me der na telha, senão me sufoco com aquele sofá sempre ali, sempre
igual. E afinal, o que há de errado se somente hoje eu fui perceber que o sofá
fica muito melhor do outro lado da sala?...
A capacidade de
se desfazer do que não serve mais me parece muito sábia. Integridade,
estabilidade, equilíbrio, tudo bonito, mas passou do ponto vira estagnação, evolui para o sectarismo. O maduro não floresce mais. Claro que é gostoso ir ficando por ali
onde tudo dá certo, mas a vida costuma providenciar umas desacomodações pra
gente se sacudir de vez em
quando. Coisa boa, que desconcerta.
Descobri que ter
um filho é isto: uma série de grandes e pequenas desacomodações. Um bebê em
casa dá uma nova perspectiva sobre a mudança: ela acontece todo dia, na sua
frente e dentro de você. Coisa impressionante. Difícil de acompanhar. Daí que ando
obcecada com as ideias de tempo e movimento. Na verdade, é bem óbvio e piegas: tudo
está no movimento, e cada coisa tem seu tempo; o drama seria bem menor se nos
deixássemos – e nos deixassem – à vontade para acompanhar o movimento, viver o
tempo de cada coisa, de cada um. Um desafio, do superego à superestrutura...
O tempo de cada
um. Quando Teresa nasceu, eu tinha ódio das piadinhas e comentários sobre
separação, essa coisa das pessoas dizerem que você precisa ser menos agarrada
com seu filho. Aliás, quem não sabia, fique sabendo: não é engraçado nem
fofinho dizer à mãe de um recém-nascido “Que bebê lindo, vou pegar pra mim!”
Não vai nããão!, ruge a leoa cá dentro. Eu tinha uma genuína vontade de ficar quase
o tempo todo com minha filha, no meu campo de visão, no meu colo, dormir com
ela, pode botar lá dentro de novo, por favor?
Aos poucos, a
vontade de separação aparece. Se não houvesse especialistas para definir quando
ela deve aparecer, se não fossem tantas as imposições externas, padronizadas, burocráticas e preconceituosas sobre o que e quando devemos sentir, talvez desconfiássemos menos de
nosso desejo de proximidade e de nossa vontade de separação, talvez fosse mais fácil acreditar na intuição e não deslegitimar o que sentimos e queremos.
Assim, um belo dia me dei conta de que precisava reaver meu tempo sozinha. Para trabalhar, que é o mais premente, mas para tantas outras coisas e também para coisa alguma. Fiquei aflita e, confesso, um pouco decepcionada comigo mesma quando percebi que mandaria minha filha para a escola bem mais cedo do que eu imaginava. Cheia de culpa. Não faltam especialistas e enxeridos para dizer que seu filho vai ser uma pessoa muito mais interessante quanto mais cedo (cedo mesmo) sair da barra da sua saia. Nem para dizer exatamente o oposto: se a criança for para a escola antes dos quatro anos o cérebro dela vai se encher de cortisol e ela será irremediavelmente infeliz, para sempre. Suspiro...
Uma solução de transição foi contratar uma pessoa para passar algumas horas com minha filha, em casa mesmo, brincar, dar atenção a ela, para que eu pudesse dar atenção a outras coisas. E isso permitiu que aos poucos eu fosse me dando conta das minhas necessidades e limites. Comecei a observar a vida alinhavada numa sucessão de movimentos de aproximação e afastamento, contração e expulsão, fusão e separação. Volto à história das mudanças e do respeito aos tempos íntimos. A vontade de mudar como uma reação ao mergulho naquilo que já deu o que tinha pra dar. Creio que minha constituição como mãe e pessoa precisava passar pelo momento da mistura com minha filha, e mesmo sem saber fui criando situações para ter o tempo necessário a fim de que a separação fosse se colocando como uma necessidade íntima e legítima, não como uma imposição do mundo para comigo, ou negligência de minha parte para com minha filha.
Não sei se escola é o melhor espaço de convivência extrafamiliar para uma criança pequena. Em uma sociedade na qual "produzir" ganha um significado quase puramente econômico, a escola infantil é, entre outras coisas, o local onde a população "produtiva" deixa a população "improdutiva" até que esta possa reunir-se àquela... Impossível não enxergar na escola uma certa cooptação da mais tenra infância pela lógica do trabalho e do poder, e é um desafio encontrar um lugar um pouco mais afastado dessa concepção. Mas ela é o espaço que está disponível.
Esses dias ouvi esta frase, não me lembro onde, parece que é um ditado africano: "É preciso toda uma aldeia para educar uma criança". Isso me pareceu tão bonito, por várias razões, mas neste momento o que bateu em mim foi "Ok, lá em casa não tem aldeia nenhuma, só tem eu..." Então... escola. No tempo certo, que não é o da licença-maternidade, da LDB, do pediatra ou da vizinha. É o tempo em que me sinto capaz de viver essa relação, de incorporar essa nova experiência ao universo complexo da relação que nos envolve a todos, mãe, filha, marido, família. Lá vamos.