Muitas coisas
aconteceram há muito tempo. Inclusive as que aconteceram há pouco tempo. Eu tenho
amizades de trinta anos atrás, e as recentes quase todas já datam de mais de
meia década. Continuo não sabendo pintar aquarela, porém já pinto aquarelas há quatro
anos. Minha filha caçula, que era um bebê semana passada, vai terminar o jardim
de infância ano que vem. A mais velha, que era um bebê semana retrasada, ocupa
toda a extensão de uma cama do tamanho padrão para seres humanos adultos. Faz 38
anos que eu tive minha primeira aula de piano. Iniciei minha primeira faculdade
há 25 anos e concluí meu mestrado há quase uma década. Mais ou menos na mesma época
em que comecei a escrever – escrever como fim, não como instrumento de estudo e
trabalho –, criei um blog e entrei no Facebook, esperando que isso me fizesse
menos angustiada e solitária. Faz nove anos que escrevo um livro que já deveria
estar pronto. Conheci o Caribe há 15 anos e quase não fui à praia enquanto estive
lá. Em dez dias farei 18 anos de casada. Meu microondas novo quebrou e eu me
dei conta de que ele tinha 12 anos. Tenho um novo microondas novo agora, o
terceiro ou quarto da minha vida adulta? Vida adulta. Apesar dos oficiais 25
anos de vida adulta, todos os dias eu não sei o que fazer da vida, e essa era a
grande sabedoria que eu imputava aos adultos: saber para onde ir. Mas parece que
o chão só surge quando a gente pisa.
domingo, 11 de dezembro de 2022
Todos os dias
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
sábado, 12 de novembro de 2022
Um desejo
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Atentar
Atentar para aquilo que desperta dentro o bem-estar. Coisas pequenas que são enormes, do tamanho da importância de refazer as trilhas das conexões cerebrais de modo que aprendemos a sorrir quando sempre aprendemos a precisar.
O vapor da sopa quente que envolve o rosto e penetra as narinas ajudando a respirar. O deslizar do grafite no papel em arabesco porque escrever é desenhar e eu já tinha esquecido. O envolvimento morno que sustenta o flutuar, pintura em negativo que preenche toda reentrância e por um instante suprime todo vazio. O toque da mão quente sobre a pele nua poderoso unguento de dormir em paz.
Questão de treinar o cérebro.
Parece que se você atentar para as belezas do caminho ocorre de se atrasar para o abismo.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
Sete minutos
sábado, 27 de agosto de 2022
Copos
O corpo tem essa função de salvar a nossa alma.
Se dependesse da minha alma, eu beberia como um russo. Mas preciso intercalar água a golinhos de vinho rosé se não quiser virar um montinho de geleia risonha com a enxaqueca contratada.
quinta-feira, 14 de julho de 2022
Púrpura
Quando li O Sol é para todos, quis tanto conversar sobre ele, mas ninguém me deu bola. Fui então puxando os fios dessa solidão e acabei chegando a um clube de leitura, de mulheres, que leem livros escritos por mulheres. Mulheres lendo mulheres. Não talvez porque as mulheres sejam especialmente isso ou especificamente aquilo, mas porque já temos muito dos homens em nós, e ouvir as vozes femininas pode ajudar a nos ver melhor.
Encerramos
o semestre lendo A cor púrpura. Um livro sobre Deus, e um livro sobre mulheres.
Um livro sobre Deus no qual ele se transmuta em minha irmã. E some. E volta. É o
campo. É um de nós.
O fim, mesmo
bonito, me é melancólico, como muitas vezes o são os finais dos livros que contam
longas histórias de vida. Como me despedir de toda essa gente, depois de tantos
anos de convivência? Além disso, olhar para a história de toda uma vida obriga
a relativizar tanto. O trauma é uma foto. (Dá bons contos, talvez?) Se só
olhamos para ela, só ele existe. Mas se abrimos o enquadramento, se deixamos a
fita correr, ele um pouco se dissolve, viver é movimento.
Por isso
não morremos. Aquelas que não morremos.
Quem não
morre penteia. Celie está sempre penteando cuidadosamente às mulheres, às crianças.
As crianças prosperam, Shug não morre, Sofia se levanta. Cuidar da vida com diligência.
Leio no Instagram de Debora Diniz que o cuidado é revolucionário. Não sei se
entendo nada disso.
Um livro
sobre mulheres no qual uma mulher oferece um espelho para que outra possa, pela
primeira vez, se ver.
Um jeito bonito de encerrar o semestre.
quarta-feira, 11 de maio de 2022
Vida de repetição
sexta-feira, 15 de abril de 2022
Meio-dia
Uma mulher de meia-idade
de classe média
medianamente bonita
no meio da rua
segura uma caixa de ovos.
E tenta
dedicadamente
não derrubar
nada.
terça-feira, 5 de abril de 2022
Devorada
Exausta, deito com meu
livro novo, o da antropóloga que sobreviveu ao ataque do urso.
Deito na esperança de
adormecer lendo. Adormecer lendo é o refúgio que aprendi na infância. A bondade de um acordo tácito no qual eu finjo que não quero dormir e o livro finge que acredita,
me sustentando tranquila e amparada até o sono chegar.
Quando estou cansada, não
tenho forças para dormir. Quero demais esse adormecimento quase involuntário,
quase narcótico, que chega como se eu não o estivesse esperando, como se acaso
fosse.
Acaso não. Um ato de misericórdia
do universo que me concede chegar ao sono sem passar pela solidão que o
precede. Um sono sem escuro.
Não sei ensinar a
adormecer porque sou eu mesma incapaz de adormecer.
O livro me devora: sou
sua, não o contrário. Quem espera a compaixão do universo não deve se fiar em
livros bons e finos.
Eu queria ser capaz de
adormecer.
sexta-feira, 1 de abril de 2022
Fases
Um dia, a mochila rosa cintilante com estampa de lhama se torna simplesmente inaceitável, e mergulhamos juntas na internet em busca de bottons e patches e chaveiros de Harry Potter para criar uma mochila personalizada sem comprar mais uma mochila, e conversamos longamente sobre consumismo e sobre a indústria dos personagens: precisamos aprender a nos inventar e a construir nossa identidade evitando ser capturados por aqueles que já a formataram completamente para nós e estão ávidos por nos vendê-la prontinha. Há que procurar brechas.
terça-feira, 29 de março de 2022
Minha natureza
Gosto de fazer yoga no parque, sob o dossel das árvores, rodeada pelas plantas que brilham e pulsam quase desordenadamente, alimentadas pela umidade do verão.
Inspiro profundamente o ar claro.
Gosto assim.
quinta-feira, 17 de março de 2022
Mergulho raso
Tenho usado o horário de almoço do home
office para nadar na piscina do meu prédio. A América Latina, esse maná de
realismo fantástico onde a gente pode unir direitos trabalhistas a privilégios
de classe e seguir vivendo como se não precisasse da revolução.
Debaixo d’água, penso no livro que estou
escrevendo, sobre maternidade. E me pergunto por que alguém ainda estaria
escrevendo um livro sobre isso depois que A filha perdida já foi escrito e
filmado.
Fico ainda mais cética de mim mesma quando lembro
que desejo escrever um livro sobre maternidade com uma perspectiva positiva. Aparentemente
o mundo não precisa disso. Mas eu preciso. Desenhar para mim mesma uma porta,
um caminho, uma fagulha de prazer no meio do cotidiano massacrante.
Meu pescoço dói faz quatro meses. Do lado
esquerdo. O pé esquerdo também dói, faz mais tempo. Eu acho a coincidência intrigante,
mas os ortopedistas não dão a mínima para ela. Suponho que se eu comentasse que
as enxaquecas são sempre do lado direito, nem levantariam os olhos do raio-x.
Até porque eles são dois. Um só cuida do
pé, o outro não cuida de nada, mas registra a consulta na fatura do plano de
saúde. Tudo o que ele pode fazer por mim é aconselhar que eu trabalhe menos e
me encaminhar para o RPG, o que até me parece uma ideia honesta. A dor não é
exatamente incapacitante, mas é persistente, duradoura, me incomoda há meses. Filmes
e séries sobre cirurgiões já me haviam alertado para a possibilidade de que
ortopedistas se sintam um pouco entediados a respeito das dores moderadas das
editoras de meia idade.
Na piscina, outras mulheres e homens de
meia idade leem seus livros, tomam sol, escrevem no computador. Penso na peste
que nos permite cuidar da saúde: por causa da pandemia estamos aqui trabalhando
na piscina, tomando sol, vendo o céu e imaginando o horizonte. Penso que
piscina à tarde é coisa de universitário, como viver de pizza e miojo. Penso no
livro que estou lendo sobre uma mulher de meia idade que vive que nem
universitário, mas sem piscina à tarde. Penso nas mulheres mais espertas do que
eu que elaboram suas angústias escrevendo na terceira pessoa.
Nado para tirar o peso de sobre os meus
pés, para que a água me sustente e eu possa flutuar.
É também por que escrevo.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
Transmutação
Era uma vez uma mulher que gostava de olhar as copas das árvores balançando,
deitada no chão. As copas das árvores não se tocam, elas balançam num movimento
coordenado como se cada uma soubesse onde a outra começa e para onde ela vai. Seus
contornos se encaixam, como os continentes em deriva, mas elas não avançam umas
sobre as outras nem sob o vento tempestuoso.
Era uma vez uma mulher hipnotizada pelo movimento das copas da árvores sob
um vento que não existe aqui, só lá em cima. A grama rasteira não sabe o vento que
enlouquece as copas das árvores e sua última folha mais alta mais alta mais
alta, que balança mais que todas e quer subir aos céus mas não se rompe porque ela
é folha mas também é árvore.
Era uma vez uma mulher deitada no chão, sobre a grama, querendo ser árvore.
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
Tove Ditlevsen
Eu não sei:
ser elegante
fazer sala
cantar no tom
Não posso deixar de:
beber vinho
usar pontuação
pensar demais
Posso:
correr na chuva
morrer de raiva
escrever poemas.
e gostar deles
domingo, 23 de janeiro de 2022
Um brinde à libertação de todos os seres
Um livro de memórias comovente; um manifesto feminista preenchido pela concretude de uma vida singular; um depoimento prático sobre o que significa (e o que custa) ter um teto todo seu; uma narrativa em primeira pessoa sobre a São Francisco dos anos 1980 e sua gentrificação; uma reflexão sobre tornar-se adulta e vir a ser a pessoa que se é; um livro de teoria e método, se me permitem um grau de empolgação.
Tenho vontade de indicar a todas as minhas amigas e aos amigos mais especiais. Amigas, leiam. Amigas e amigos da Geografia e da História, em particular, leiam.
Eu nunca tinha passado pela sensação de que a vida fica velha, não nós. Nós que estamos aqui estamos aqui, no presente. Hoje olhei para meu querido tempo de universidade e percebi que ele ficou velho.
Mais que a amigas e amigos queridos, tenho vontade de indicar esse livro para a jovem que eu fui, e me pergunto o que teria feito comigo ler mulheres assim quando tinha 20 anos, evitando encarar o que ainda pode fazer comigo ler mulheres assim aos 40.
***
Rebecca Solnit, Recordações da minha inexistência, Companhia das Letras.